quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

GHOST


Um dos sinais de que estamos envelhecendo, é quando começamos a encontrar parentes em enterros.
Detesto enterros, e não vou a nenhum. Já basta ao meu que não poderei faltar.
Aos demais, a viúva e filhos terão que se contentar com um telegrama.
Velório da capital é horrível. No interior sim, é uma beleza. Têm carpideiras, tira-gostos, cafezinho, licor, e até cantador. É uma festa!
Ficou famoso o velório onde um dos presentes, pagodeiro famoso, juntamente com o violeiro arriscou um pagode. Como a recepção foi das melhores, resolveu fazer uma “vaquinha”, pra comprar umas cervejas e tira-gostos, só pra ajudar a passar o tempo.A viúva resolveu também contribuir, mais teve sua oferta recusada:- Não madame,  a senhora já “entrou” com o defunto.
Quando todos estavam cantando na porta da capela, pra aproveitar “a fresca” da madrugada, um engraçadinho colocou o defunto sentado, com um copo na mão, enquanto o apoiava escondido atrás de enorme coroa de flores, na cabeceira do caixão.
Quando um dos “biriteiros” entrou para pegar mais cerveja, o “escorador” do defunto exclamou, como um ventríloquo:- E eu, não vou tomar nada?
Não ficou ninguém. A correria foi geral. Pessoas de sentinelas vizinhas acudiram, e quando viram o defunto sentado com um copo na mão, também correram. Até a policia foi chamada.
Um velório desses sim, vale à pena!
Há alguns anos, uma prima foi ao velório de um conhecido.No velório ao lado, a placa com o nome do falecido. Era o meu! Nome e sobrenome idênticos. Ambos difíceis de serem encontrados.
Ao chegar em casa, com medo de ligar pra mim, ligou para minha cunhada, perguntando se eu estava bem.
Ao saber da história, resolvi ligar pra ela, com voz trêmula:- “Belzinha é seu primo que está ligando do céu, querida. Estou ligando pra agradecer sua preocupação e pra dizer que cheguei bem, e que a “galera” daqui, é “tudo gente fina”.
Só não posso demorar muito, pois São Pedro só permite um minuto por pessoa.Você não faz ideia como a fila é grande. Tá todo mundo querendo falar com o pessoal de casa”... 
Colocaram-me o apelido de Ghost.
Mas a pior experiência, vivi há uns 30 anos, quando do enterro de um parente.
No velório encontrei boa parte da “parentada”.
A velha tia, irmãos, primos e sobrinhos do morto. E ele lá, sozinho no meio da sala, metido em um jaquetão listrado, com a barba por fazer e um sorrisinho no canto da boca.
Não se ligara a ninguém, nem tivera filhos. Talvez isso explicasse sua solidão naquele momento. Nada de olhos úmidos, nem a ponta de um véu negro a roçar-lhe a barba.
Em pequenos grupos que conversavam alegremente, foi-se arrastando aquele encontro que em nada lembrava um velório, quando uma irmã do falecido, querida por todos pelo seu jeito bonachão e palavreado de botequim, aproximou-se da janela querendo refrescar-se, e assombrada com as pesadas nuvens que se juntavam rapidamente, deixou escapar:- Xiii... vai cair um toró da porra!
Um calor sufocante, pigarros, arrastar de pés e cadeiras, ufas!...  que escapavam insolentes, denunciavam a impaciência reinante.
Afinal o que estamos esperando? Pensava, quando alguém suspirou à minhas costas:- E o padre que não vem?...
E ele veio. Pesado e oleoso, com a calva brilhando de suor, acompanhado de um ajudante, abotoado até o pescoço, que repetia sua reza com a imponência de um arauto.
Com um olho na chuva que ameaçava cair a qualquer momento e outro no missal, o padre lustroso rapidamente encerrou a cerimônia:- Podem fechar o caixon. Sentenciou com forte sotaque galego.
Dezenas de mãos solidárias precipitaram-se sobre a tampa do ataúde e rapidamente o finado sumiu dentro da urna. Sob um céu baixo e escuro seguiu a comitiva.
O padre gordo na frente apressou a reza e o passo. Atrás o caixão instalado em um carrinho, empurrado e puxado pela parentada aflita com o temporal, trepidava sobre o tampo metálico.
As velhas senhoras, metidas em saltos altos, não conseguiam acompanhar a correria e foram ficando para trás, num festival de pisadas em falso, tornozelos torcidos e corpos oscilantes.O padre apressado já obtinha larga dianteira e começava a sumir no forte declive em que se tornara o caminho, quando ela chegou. Redonda e cheia a primeira gota, ressoou na tampa do caixão como uma bola de gude.
Quando o cortejo chegou ao alto da ladeira, o temporal desabou de vez. A debandada foi geral. Debaixo de uma chuva pesada e grossa, todos corriam procurando abrigo.
Valia tudo para se proteger. Desde o pequeno beiral do ossuário próximo, à arcada do jazigo de imponente família. 
A mulher do deputado passou por mim, rápida como uma gazela, com os sapatos nas mãos, e a pesada maquiagem escorrendo pelo rosto, em uma lama colorida. 
A velha professora de francês rodopiava debaixo da tormenta como um brinquedo de corda, sem saber por onde fugir.
A visibilidade era péssima. Por trás da cortina de água, ouviam-se mulheres chamando pelos maridos, filhos pelas mães e sonoros palavrões após escorregões. 
Raios riscavam os espaços, iluminando tudo, seguidos por trovões pavorosos. Parecia que o mundo ia se acabar. No alto da ladeira o carrinho com o caixão permanecia escorado por um pequeno calço.
O movimento do veículo, inicialmente imperceptível, rapidamente transformou-se em desabalada correria ladeira abaixo. No final da ladeira o caminho virava abruptamente à direita, mas não o caminho retilíneo que o caixão tomou após o carrinho “topar” com o meio-fio.Sob o temporal, o caixão foi catapultado enquanto raios, certamente atraídos pelas cantoneiras e enorme crucifixo de metal, pulverizaram-no em pleno ar.Foi o desenlace mais esquisito que vi para um enterro. O defunto sumiu!
A partir deste dia nunca mais fui a um enterro, e quando “chegar minha hora” quero ser cremado.

 Salvador , 12 de Dezembro de 2011
Sávio Drummond.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

MORENA FLOR


Outro dia a vi passar de braços dados com outro alguém, que como disse Lupicínio Rodrigues  “ ... nem um pedaço do seu pode ser”.
O pipoqueiro que lhe atendeu quase disse o meu nome sem querer, acostumado que estava em nos ver abraçados passar, e beijos trocar.Estava com um vestido rodado, com estampas de coloridas flores azuis.                                                        Cheguei perto para vê-la melhor, e por ela ser visto, e pedi um saco de pipocas. 
Seu olhar severo e discreta palidez em seu rosto, denunciavam que não aprovara minha  atitude, mas também revelavam que eu não era de todo indiferente. Havia deixado marcas. . .
O frio vento do fim da tarde arrepiou os pequenos pelos doirados, tais quando sussurrava  em seu  ouvido, e pequena aragem  agitou seus cabelos e um agradável odor de rosa, exalou como antigamente.
O seu afastamento, vi através da “turvisão” das lágrimas, que teimavam em aflorar-me aos olhos...
No meu peito nada mudou!
Sentimentos no peito guardados, em cinzas transformados, reascendem ao menor sopro da paixão, como as cinzas reacendem em brasas, até explodirem em chamas, mostrando que, bem  lá no fundo d’alma continuas amando...
Fiquei observando os dois se afastando...Como dói o ciúme. Quem devia estar abraçando ela era eu!
Foi aí que ela olhou para trás e um sorriso escapou de seus lábios.Ele certamente era apenas mais uma paixão. Mas seu verdadeiro amor fui eu! E que me desculpem as feministas, não resisti, e escrevi;


RECEITA DE MULHER

Vá devagar, passo a passo,
Com muita concentração e ardor.
Bom mesmo ser um pouco devasso,
E ter um peito de aço,
Pra viver um grande amor.
Cravo e canela,
 Devem ser o sabor e a cor dela.
Melhor ser um escultor, 
Pra viver um grande amor.
Comece pelos cabelos.
Pode ser “pinchauim”, liso, anelado.
Dividido no meio, ou do lado.
E quando acabar ponha uma flor.
Rosa, Margarida, a que for.
Contanto que tenha um agradável odor.
A sobrancelha longa, arqueada,
Deve ter sua amada.
Os olhos um pouco tristes.
Mas que façam pensar; 
“O que diz este olhar”?
O nariz levemente arrebitado.
E até um pouco desaforado.
A boca carnuda parece um coração.
Meu Deus, que tentação!
O ouvido, se sussurrado,
Deixa os pelos arrepiados.
E pondo duas covinhas ao sorrir,
Acabarás de esculpir.
O pescoço longo, em branco marfim,
Inspirando loucuras sem fim.
Os ombros em curva suave,
 Lembram o pousar de uma ave.
Braços delicados deve ter essa danada.
Com mãos macias, mãos de fada!
O seio que caiba na mão.
Mas cuidado com a prevaricação!
O ventre tentador, sem pejos,
 mate sua sede no “poço dos desejos”.
A “bunda” redonda, empinada se fizer.
Muita gente vai matar essa mulher.
As coxas colunas de mármore fino.
Feitas por um escultor Divino.
Cozinhe em fogo brando,
Mas tenha cuidado,
Porque você já foi “fisgado”,
Pois está amando.
Sal e pimenta “à gosto” no final.
Coma devagar, não vá passar mal.
Deguste ajoelhado, como quem ora.
Pois esta é a receita de sua Senhora.
                                                                                                           
Salvador, 14 de Dezembro de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

BAIANA RETADA


Muitas são as heroínas das guerras de Independência, mas muito pouco se falou sobre Maria Felipa de Oliveira. Maria Felipa era de Gameleira, na Ilha de Itaparica, e de lá chefiou a resistência, nas lutas de Independência, na Ilha de Itaparica. 
Conta a lenda, que Maria Felipa, negra, descendente de escravos Bantos, alta e bonita, juntamente com  40 outras mulheres, atraíram 60 soldados portugueses para um encontro amoroso.Depois de embriagá-los e tomar as armas, despiu-os e os humilhou, expulsando-os com uma surra de cansanção, arbustos de folhas urticantes. 
Junto com as companheiras, queimou 42 navios da esquadra portuguesa, sediada em Itaparica, facilitando muito o trabalho dos combatentes baianos, nas lutas travadas em Salvador. 
Maria Felipa, marisqueira, formosa e de porte atlético, atravessava a Baia de Todos os Santos, remando, para buscar mantimentos, jogar capoeira e manter-se atualizada com o movimento libertário. Atuava também como enfermeira.
Certa feita enfrentou os herdeiros do Visconde do Rio Vermelho, que queria levar uma imagem de Nossa Senhora de Itaparica para Salvador.  
A luta das mulheres baianas, muitas anônimas, é representada pela Cabocla e culminou com a expulsão das tropas portuguesas, e a verdadeira Independência do País em 2 de Julho de 1823.
                                                                                                                                                                    MARIA FELIPA DE OLIVEIRA

A mulher que se acalenta, e estava em todo sonhar,
 Negra, alta e corpulenta, mandava e fazia acatar.
A nossa Leoa Guerreira, era um anjo caminhante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

 Em cada batalha ajudou a vencer o Dragão da Tirania,
Em tudo ela se superou, a Maria Doze Homens se sabia.
Morava na rua da Gameleira, era um anjo caminhante,
Maria Felpa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Somava beleza com arte, patriotismo e amor,
Terra Itaparica, um baluarte para defender Salvador.
Cada refrega derradeira, todo momento palpitante, 
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Arrojada ia na frente, a independência e a liberdade,
Confiava em sua gente, era guerrilheira de verdade. 
Trabalhadora, marisqueira, uma linda rosa vicejante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Enfrentando mosquetão e canhão de longe a disparar,
 Com paus e pedras na mão, tentando armas conquistar,
Grande mestra de capoeira, e em todo embate triunfante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Havia temor de participar e aumentar a repressão,
Ela sabia as coisas explicar, e ao povo dava satisfação.
Era uma mulher altaneira, tão abnegada militante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Fazia tudo para organizar, e nenhuma falta ser sentida,
Sabia que podia tombar, preparava para ser substituída.
Mulher grande bandeira, que cada um seguia radiante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Desprendida e preparada, patriota nas intenções,
Com 40 mulheres sagradas, queimaram 42 embarcações.
Invencível e sobranceira, Rosa Palmeirão santificante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante.

Ajudou na Independência, contribuiu para essa nação.
Sempre será referencia, pois vive em cada coração.
Amedrontava era feiticeira, ou carinhosa era cativante,
Maria Felipa de Oliveira, em Itaparica comandante. 



Salvador, 01 de Dezembro de 2012
Sávio Drummond.                                                          

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

O ARQUITETO DOS SONHOS


A curva em reta virou, 
e as ondas do mar um deserto ficou. 
A rampa que alçava, em fundo abismo despencou.
O espaço vazado, de poesias vazio calou, 
As sinuosas montanhas que no  retrato havia.
foram aplainadas e apenas uma foto as trazia.
E os ocos da gente, não mais fazem eco,
pois o coração não mais tem paredes nem teto.
Ainda sangra a latina mão da criança esquálida. 
E a lágrima cristalina brilha, como uma joia clara. 
Até o disco voador, de Niterói voou para o além,
Niemeyer, arquiteto dos sonhos, o pilota também.
                                                                                                   
Salvador, 06 de Dezembro de 2012.
Sávio Drummond.

AMOR E SEXO


Geralmente confundidos, na verdade são completamente diferentes. Fala-se frequentemente em fazer amor.Amor é um sentimento, portanto não se faz se vive. Sexo sim, se pratica.
Amavam:  Madre Teresa de Calcutá, Chico Xavier, Irmã Dulce, Dorothy Stang, Martin Luter King, Mahatma Ghandí, Chico Mendes e outros. Fazemos sexo, todos nós (pelo menos a maioria), míseros mortais.
Os poetas desde a antiguidade localizaram o coração como sede desse sentimento. Daí dizermos estar com o “coração explodindo de felicidade, ou “pequenininho de dor, ou saudade”.
 A escritora mexicana Laura Esquivel em seu romance Como Água Para Chocolate, de 1989, ambientado no México, no início de Século XX, fala muito bem sobre as diferenças. A avó de Tita, a personagem central, dizia que a paixão era como um fósforo que se queima. Você se apaixonará, quantos fósforos tiver pra queimar.Mas o amor, é como se você queimasse toda a caixa.Só se ama uma vez na vida.
Os Neurofarmacologistas, transformaram a paixão a simples transmissão de impulsos nervosos no espaço que une os Neurônios, chamado de Sinapse. Nela a transmissão elétrica é rápida, nos apaixonados, devido a liberação de Noradrenalina e Feniletilenoamina (semelhante a Anfetamina), na fenda sináptica. O apaixonado fica ofegante, a pupila se dilata, o coração bate acelerado, a Tensão Arterial se eleva, a boca fica seca, arrepios e tremores são frequentes. Alterações semelhantes as que ocorrem no Stress, mecanismo primitivo de alterações corporais, que permitiu ao “Bicho Homem” tomar as duas únicas decisões diante do inimigo: Lutar ou fugir.
Fazer sexo, neurofarmacologicamente, assemelha-se a lutar.O apaixonado pode morrer de arritmia, enfarte ou derrame.O amor é sereno, tranquilo. Quem ama quer que a pessoa amada se realize.Seu cérebro está “embriagado” de Serotonina. Quem ama não vê defeito na pessoa amada, daí dizer-se que “se vê o mundo pelas lentes cor de rosa do amor”.Na paixão, todos os sentidos estão envolvidos. Pratica-se sexo com todos os sentidos e não apenas com os Genitais Externos: 
Visão - Fonte mais importante de estimulação sexual. Quando duas pessoas se olham e se apaixonam, segundo os Psicanalistas, muito mais que a beleza, é porque inconscientemente, aprovam os filhos que teriam, caso cruzassem, pois seriam crianças bonitas e saudáveis. Segundo eles, a mulher por ter um período procriativo (Menacma), menor que o homem, apaixona-se não só pelo homem bonito e saudável, capaz de gerar bons filhos, mas também pelo “macho” capaz de prover e proteger a si e a prole.O amor “entra” pelos olhos.
Audição - A linguagem sussurrada ao ouvido provoca excitação. Algumas mulheres arrepiam-se e chegam a sentir cólicas uterinas, devido à liberação de ocitocina, hormônio que normalmente só é liberado nas grávidas, no período expulsivo.
Tato - A pele é chamada de maior órgão sexual do Ser Humano. Milhões de terminações nervosas nela, nos lábios, língua e dedos, fazem estas estruturas quase tão sexuais quanto os genitais.
Paladar - Todo o paladar está na língua.Em um beijo, os batimentos cardíacos podem dobrar e a Tensão Arterial se elevar e milhões de bactérias serão trocadas juntamente com a saliva.Beijar pode causar cáries!
Olfato - Os animais sentem o cheiro um do outro, exalado por bilhões de poros. São os chamados ferohormônios. Segundo algum sexólogo não existe amor a primeira vista, e sim amor a primeira cheirada.Não há duas pessoas com o mesmo cheiro. Os ferohormônios representam milhões de anos de evolução, que “apagamos” com uma gota de perfume.

                                                                            
Salvador,18 de Fevereiro de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A TERRA PLANA


Mistérios sempre hão de pintar por ai... disse o velho Gil, com a sabedoria de um Guru iluminado.
Realmente, ao ampliar seus sentidos com suas máquinas cada vez mais sofisticadas, o Homem passou a ter acesso a fenômenos antes não compreendidos ou sequer imaginados.
Vivemos hoje a época dos mistérios criados pelo Homem. E os antigos mistérios? Os naturais, místicos, frutos da ignorância, medo ou da mais pura fantasia?
Esses foram “atropelados” pela maturidade intelectual da espécie, que tornou a vida mais óbvia e nem por isso melhor.
Senão vejamos:
Acreditando-se imagem e semelhança de Deus, que lugar estaria reservado para nós, se não o centro do Universo, com todo o infinito a girar por sobre nossas cabeças, como um carrossel alucinado?
Veio Copérnico e nos colocou em nosso minúsculo e devido lugar.
E o Dilúvio Universal, com o herói Noé salvando as espécies da Ira Divina? Realmente existiu como atesta a grossa camada de limo dos extratos arqueológicos de 12.000 anos de Jericó. Porém reduziram-no a um cataclismo local, diminuindo a grandiosidade do feito do nosso salvador Bíblico, retirando-o da galeria dos super heróis.
Depois a concepção da Terra plana, com os antigos navegadores a espreitar o horizonte à espera de a qualquer momento precipitarem-se em colossal cachoeira que a tudo consumiria em um abismo sem fim.
O perfil convexo da Terra nos eclipses lunares e posteriormente as viagens de circunavegação, arredondaram o planeta.
E as bruxas que por mais de trezentos anos arderam nas chamas da ignorância e do poder da Igreja?
Na sua maioria mulheres jovens e bonitas, queimaram nas fogueiras os desejos e a sexualidade reprimida de seus inquisidores. Já não voam em noites de Lua, nem celebram sabats.
E o Sudário de Turim? Não resistiu a datação pelo Carbono -14, mostrando que o lendário lençol de linho pode ter envolvido o corpo de um homem supliciado tal qual o Cristo, mas seguramente não foi o do “Pescador de Almas” da Galiléia que nele embrulhado, baixou ao sepulcro, pois não tem mais de 900 anos.
E o sangue de São Genaro? Milagre com hora marcada, que a vista de fervorosas testemunhas, liquefaz-se?Pesquisadores reproduziram em laboratório, utilizando-se de ingredientes conhecidos na época em que o Santo foi executado, uma solução vermelha e densa que se cristaliza em repouso e que ao menor abalo liquefaz-se, escorrendo pelas paredes do recipiente.“Rescaldado” pelo Carbono - 14, o Vaticano nega-se a fornecer uma gota sequer do “sangue” do pobre Genaro para estudos. E precisa?
Alguns misteriosos personagens povoaram a fantasia do Homem, assustando-o como bichos papões soltos em quartos de crianças.
Monstros marinhos, dragões, vampiros e lobisomens não sobreviveram à violenta realidade do quotidiano.
Alguns deixaram saudades, como o Abominável Homem das Neves (porque abominável?), por exemplo.
Quem mais ouviu falar dele? Teria se mudado para regiões mais altas do Himalaia, fugindo à invasão
chinesa, ou quem sabe joga hoje incógnito em algum time da NBA?
Até o monstro do lago Ness, que em fotos atravessou décadas de estudos por especialistas, que sempre lhe autenticaram como remanescente pré histórico, aprisionado em um lago Escocês a encher de sonhos a cabeça de curiosos ingênuos, e de dinheiro o bolso de espertalhões, teve seu fim anunciado pelo autor das fotos, que pouco antes de morrer, revelou como as realizara. É... A Terra está ficando um lugar óbvio demais.
A paisagem do imaginário humano mostra-se plana como a terra dos antigos navegadores, ou melhor, como árida planície saída de um quadro de Salvador Dalí, onde a vista tudo alcança, sem nichos ou escaninhos onde nossos medos e fantasias possam se abrigar.
                                        Salvador, 10 de Abril de 1994
Sávio Drummond.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

AS SETE FACES DE TÂNATOS


Todo indivíduo ao receber a notícia de que é portador de uma doença incurável e terminal, costuma passar por 7 fases, algumas “bem marcadas”, outras rápidas e ligeiras, só identificadas por especialistas.
Na antiguidade o Deus grego da morte, chamava-se Thânatus, Tânatos em português, e é ele que “preside” as fases pelas quais todos nós passaremos.
Filho de Crises e Érbero, irmão gêmeo de Hipnos, o Deus do sono.
Certamente por isso Machado de Assis, intuiu: “O sono é a morte interina”.
Thânatus era representado por um jovem alado, com os cabelos e olhos prateados, daí falarmos em “O anjo da morte”.
Todos nós sabemos que vamos morrer, mas quando estamos de ante desta situação a “coisa muda de figura”.
A  1ª fase á de Negação. O diagnóstico está errado, e começa as consultas a especialistas, com repetições de exames, na esperança de que um deles comprove o erro de diagnóstico.
Uma vez comprovada à doença fatal, começa a fase da Revolta.
Nesta 2ª fase, o indivíduo volta-se contra Deus. Como Ele foi permitir acontecer isto?
A 3ª fase caracteriza-se pela Luta. O paciente reage, usa todos os recursos que tem, “cumpre à risca” o tratamento, em busca da desejada cura.
Na  4ª fase o indivíduo torna-se religioso, e tenta negociar com Deus a cura.
É fase da Barganha. Hora das promessas, sabiamente exploradas por religiosos inescrupulosos. Vale tudo para a cura: Óbolos, Doações, Trabalhos, Despachos, Dízimos, etc...Se por ventura a Quimio ou Radioterapia funcionarem curando o doente, não foi o tratamento, mas sim Deus que curou!
É obvio que foi Deus, mas através dos progressos da ciência (faça a tua parte).
As melhoras ocasionais, decorrentes do tratamento são encaradas, como de uma doença não tão grave.
É a 5ª fase ou a fase da Minimização, onde a doença é encarada como “menor”, passível de cura.
Com a ineficiência dos tratamentos, vem a fase de Aceitação. É a 6ª fase, a dos vícios em drogas para dor, alcoolismo ou a dos suicídios, se o sofrimento físico for grande e o “apoio” espiritual (fé religiosa) pequena. esta fase, o doente ingressa em uma zona da paz. É a 7ª, e última fase, a fase da Disponibilidade.
Nela o doente torna-se disponível, para que Tânatos o venha buscar...
                                                                                                                                            
Salvador, 02 de Agosto de 2012
Sávio Drummond.

VÁ COM DEUS!


Tive um colega no Salesiano, que foi o indivíduo “mais perturbado” que conheci.
Pegou a pólvora de várias bombas e fez uma bola, do tamanho de uma bola de tênis.
No seu interior colocou várias “pedras de fogo”, tudo comprimido. Papel grosso e cordão asseguravam a forma do explosivo artefato.
Certa tarde estava estudando com ele, quando de repente fez sinal para me calar e levantou a cabeça. Tinha escutado algo. . .De repente apanhou a bomba e saiu correndo para o jardim.
Pelo meio da rua vinha um cortejo de enterro. Quando o féretro ia passando frente ao seu jardim, atirou a bomba com força, que ao atingir o chão explodiu.
Foi um verdadeiro atentado terrorista. 
Sai correndo atrás dele, que pela porta dos fundos alcançou a rua de trás.
Não fiquei para saber qual a desculpa que seu pai arranjou.Muito tempo depois fui a um enterro. Quando depositaram o finado na carneira, sua viúva retirou os óculos escuros e anotou o número do jazigo, enquanto dizia: Obrigado querido, vá com Deus!
Quando perguntei por que assim procedia, sorrindo me respondeu:
 - O senhor viu que belo número o falecido me indicou? Vou jogar no bicho!
Certo dia transportava um politraumatizado para o Pronto Socorro, quando a ambulância ficou retida, em um engarrafamento provocado por um cortejo fúnebre.É interessante notar, como os pobres, conseguem na morte a “importância” que não tiveram quando vivos.Vão pelo meio da rua engarrafando tudo, forçando com que os transeuntes e o tráfego tomem parte do cortejo. O motorista ligou a sirene e eles permitiram apenas a passagem da ambulância, impedindo com que os outros motoristas que nos acompanharam, tentando furar o bloqueio, também passassem.Enquanto a ambulância atravessa a multidão, querendo retribuir a gentileza, gritei bem alto:
- Muito obrigado a todos, um feliz enterro pra vocês!

Salvador, 03 de Outubro de 2012.
Sávio Drummond.

O SURFISTÃO


Em seu 10º aniversário, dei uma prancha de Body Board para minha filha, mas quem acabou usando mesmo fui eu.
Em um belo “domingão” de Sol, resolvi aprender a deslizar sobre as ondas.
Não tinha a menor ideia por onde começar, então me dirigi ao local onde os surfistas estavam reunidos, esperando as ondas. Imagine a cena. Eu com este físico atlético, de sunga e com os óculos presos com um elástico, pois graças a forte miopia, não poderia ficar sem eles.
Logo ao chegar um deles gritou para o grupo:
- Tem traíra no pedaço...
Obviamente que era comigo, mas fazendo-me de desentendido, comecei a imitá-los.
As ondas vêm em grupos, e a 1ª nunca é a melhor.
Para evitar que ela lhe leve, você deve remar (nadar) contra ela, furando-a (mergulhando o bico da prancha), no momento exato.
A primeira onda que peguei, ficou gravada em minha mente, como dizia a propaganda: “ O primeiro sutiã a gente nunca esquece”... Bom disso não posso falar, mas da onda sim!
Uma grande onda formou um “um tubo”, e acompanhando a garotada fui atrás.
A sensação é maravilhosa, parece que você entrou em um túnel de vidro, e quando dele saí, “quebrei” imediatamente, pois atrás de você ela se quebra em uma “explosão” de chuva salgada.
O primeiro registro do surf refere-se aos nativos do Havaí que em cima de enormes pranchas de madeira, deslizavam sobre as águas, e elas não tinham quilha!
Como elas, as pranchas de Body Board também não tem quilhas e as manobras tornam-se mais difíceis que no surf.
O equilíbrio para manter-se em pé  em cima da prancha, no surf, é que o torna dificílimo!
Empolgado com meu progresso peguei a maior onda de minha vida, e para surpresa minha ela “encaixotou”, ou seja, terminou de repente e despenquei de mais ou menos 5 metros.
O choque com a água foi terrível!
Recordo-me de ter protegido a cabeça com os braços, largando a prancha (no Body Board a prancha é presa ao pulso pelo “elastique”, no Surf no tornozelo) e esperei a pancada.
Para minha sorte, meus pés bateram em areia, e dando impulso com todas as forças atingi a superfície.
Meus novos amigos (os surfistas) estavam todos preocupados esperando meu retorno, e quando aflorei, um deles gritou:
- Uma onda dessa não se pega não, tio!
E foram buscar a prancha que o mar levou pra praia, pois o elastique tinha arrebentado.
Então me “adotaram” definitivamente.
Mas o pior “ mico” foi quando em um fim de tarde, uma grande onda que eu “furei”, levou meu calção.
Tive que pedir a um dos surfistas que fosse até minha casa (moro há 500 metros da praia), pegar outro.
Aí então, encerrei minha carreira de surfistão!

                                                                                  Salvador, 23 de Setembro de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O CARECA ATRÁS DO VIDRO

Para minha filha e seus sonhos. Pois fora dos sonhos não há salvação.

Assustada pulou em nossa cama, camuflando-se entre as cobertas. 
Já tinha assistido a esta cena várias vezes, e o motivo era sempre o mesmo: medo de dormir sozinha.
Só que dessa vez, em lugar de acolher seu medo, experimentei conversar com ela, esforçando-me em voltar à infância e deixando fluir livremente tudo que me assustava quando de sua idade. Assim, travamos este insólito diálogo, que jamais esqueci:- Com medo dele de novo, não é? Basta botar o pé pra fora que o bicho debaixo da cama tenta pegar. 
- Como é que você sabe?
- Ora também já fui criança!
- É! Ele fica esperando, mas não consegue. Eu sou mais rápida e sempre puxo o pé antes dele pegar. Sem falar naqueles fantasmas fininhos e transparentes que moram atrás do armário e que saem flutuando, que a luz se apaga, pra vir sussurrar no seu ouvido; - “Você está com meeeeeedo”... 
- E a bruxa que desce do telhado pra roer nossas unhas?
- Isso mesmo. Temos que dormir com as mãos fechadas e os braços encolhidos.
- Também conheci essa. E o homem atrás do vidro da janela, sempre olhando a gente?
- É quando a gente vira, ele se abaixa a tempo e a gente nunca consegue vê-lo.
- Mas ele sempre está lá espiando...
- Sempre. Eu nunca o vi, mas tenho certeza que é careca!
- Quê coincidência! Eu sempre achei que ele fosse careca, mas nunca contei isso a ninguém.
Mas você já parou pra pensar, que eles não lhe fazem mal? Na verdade são até companheiros nesses momentos de escuridão e solidão?
Chegará um dia que daremos uma festa e convidaremos todos eles. A bruxa roedora de unhas, os fantasmas fininhos, o bicho da cama e o careca da janela.
Conversaremos sobre suas famílias, seus problemas e quando isso acontecer eles ficarão seus amigos e lamentavelmente, filha, nunca mais voltarão. Quando esse dia chegar é sinal de que você está crescendo, e a magia maravilhosa que existe em sua cabecinha, que lhe permite conversar com os bichos, alcançar as nuvens mais altas nas asas dos pássaros, fazer de um caixote velho um palácio encantado cheio de fadas, madrinhas de suas bonecas, estará desaparecendo e dando lugar aos sonhos de gente grande.
Mas, gente grande é tão chata filha, filha. Não tem imaginação. Só conseguem sonhar com coisas possíveis. Alguns já não conseguem sonhar, só desejar. 
Por isso filhinha, entenda que esses personagens vêem do mesmo lugar que as fadas e os príncipes, e que não lhes querem mal. Certamente assustar é da natureza deles. Como fazer encantamento é da natureza das fadas e governar povos felizes em reinos floridos é ofício dos príncipes encantados.
Então diga boa noite a eles e vamos todos dormir. Porque apesar dos meus fantasmas, eu já cresci e estou com um sono danado.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Salvador, 30 de Janeiro de 1990.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ZENAIDE


No 1º Científico tive uma colega chamada Zenaide. 
Era a mais bonita e melhor aluna de Matemática da classe.
Assim como quase todos nós, tinha 15 anos, mas “pensava” como um adulto responsável. “De cabeça” Zenaide parecia ser avó.
Filha de uma viúva, ajudava a mãe como costureira na manutenção da casa.
De pele muito clara, olhos e longos cabelos castanhos, sempre parecia que tinha acabado de “sair do banho”. 
Muito equilibrada, frequentemente recorríamos a ela para que resolvesse “pendengas” entre nós, ajudava a todos e logo se tornou líder da turma, tal as suas sábias decisões. Liderança conquistada com afeto, e posta à prova por diversas vezes.
Uma foto em preto e branco me mostra parte da turma: D. Irene (bedel), Professor Barretão, que ensinava História Geral e sempre chorava quando falava da 2º Guerra Mundial, pois seu filho, aviador da F. E. B. (Força Expedicionária Brasileira) morreu em combate na Itália, Professor Vilobaldo de Física, com sua impecável gravata borboleta e cigarrilha nos dedos, Professora Maria Amélia, de Química, Professor Egídio, de matemática e alguns colegas como Givaldo, Leitão e Roberto, que juntamente comigo participaram da Feira de Ciências, construindo um foguete, Carminha, filha de abastados emigrantes espanhóis, que namorava o baterista do conjunto Raul Seixas e Seus Panteras, outros que não me lembro o nome e ela. Como em um time de futebol, ela estava em pé e no centro, como se fosse o Capitão. Só faltava a Taça de Campeão do Mundo, erguida por Bellini, Capitão da Seleção Brasileira, Campeã Mundial de Futebol, oito anos antes,  na Suécia em 1958.
No ano seguinte Zenaide apareceu “embuxada”. Com fardas cada fez mais folgadas, tentou esconder a barriga, até não poder mais. Ao parabenizá-la, entre lágrimas, me respondeu que depois da aula procurou o professor de Matemática, sua matéria preferida, para tirar dúvidas sobre logaritmos. Encontrou-o chorando, pois tinha brigado com a esposa e estava separado. Disse-me que ele resolveu suas dúvidas logarítmicas, e ela, muito solícita, resolveu consolá-lo em seus problemas matrimonias... Resultado: Professor Egídio, tirou-lhe as dúvidas, lhe deu um filho e voltou para a mulher!
Anos depois a encontrei no ambulatório de Cardiologia, pois fora levar a mãe, agora Hipertensa, e apresentou-me seu filho, que só conhecia “por fora”.O filho de Zenaide, então com 15 anos, se parece muito com a mãe. Alto, aloirado, um belo rapaz.
O “mau passo” de Zenaide, com o tempo, revelou ter sido um “ótimo e bom passo”.

                                                                                         Salvador, 29 de Maio de 2012. 
Sávio Drummond.                                       

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

A ATRIZ


No “fundo” todos nós somos atores.
Estamos sempre interpretando um papel, procurando mostrar para os outros, aquele indivíduo que gostaríamos de ser.
Só tiramos “a máscara”, quando estamos a sós, ou quando vamos dormir.
A sinceridade, como diz o ditado popular, só existe nas crianças, no vinho e na fidelidade.
Quem não quer ser mais alto, mais bonito, mais inteligente?
O carnavalesco paraense Joãozinho Trinta já dizia; “Pobreza é coisa de intelectual, e acrescentaram; “Beleza interior, só é bom mesmo para decorador... 
Também Vinícius de Morais; “ As feias que me desculpem, mas beleza é fundamental”.
Graças à busca do “Tipo Ideal”, mais magro, mais jovem, mais bonito, é que os Cosmetólogos, as Clínicas de Estética e Rejuvenescimento, as dietas milagrosas e Cirurgiões Plásticos implantando cabelos, e silicone nos seios, fazem tanto sucesso.
Todos nós queremos enganar o tempo...
Nada contra, eu também gostaria de ter 1,90, olhos verdes, cabelos longos e lisos e ser “saradão”.
Você já reparou como as academias de ginásticas, ficam repletas antes do verão? Quem não quer exibir um belo corpo em sungas e biquines nas praias?
E principalmente viver bem mais que a expectativa de vida atual, nas sociedades com os problemas básicos de alimentação e esgotamento sanitário resolvidos.
Mas infelizmente ainda se morre de diarreia e de doenças ligadas a fome e a miséria!
No fundo da mente todos nós temos um ser mágico.
Para mim a atriz, misteriosa, sedutora, personagem vestida de sonhos, a povoar minha mente e a roubar-me o sono, nos momentos de solidão, e enquanto o espero chegar.
Em busca de material para este conto, fui a Internet e deparei-me com a música Beatriz de Chico Buarque e Edu Lobo, gravada pelo Milton Nascimento.
Confesso que fiquei com ciúmes, pois gostaria de ter feito a letra, pois é exatamente o que penso a respeito da Atriz.
BEATRIZ
Olha,
Será que ela é moça,
Será que ela é triste,
Será que é o contrário,
Será que é pintura, O rosto da Atriz?
Se ela dança no sétimo céu,
Se ela acredita que é outro país,
E se ela só decora o seu papel, 
E se eu pudesse entrar em sua vida...
Olha,
Será que ela é de louça,
Será que é de éter,
Será que é loucura, 
Será que é cenário,  
A casa da atriz?
E se ela mora em um arranha-céu,
E se as paredes são feitas de giz,
E se ela chora em um quarto de hotel,
E se eu pudesse entrar em sua vida...
Sim, me leva pra sempre Beatriz,
Me ensina a não andar com os pés no chão,
Para sempre e sempre por um triz.
Ai, diz quantos desastres tem em minha mão,
Diz se é perigoso a gente ser feliz...
Olha,
Será que é uma estrela, 
Será que é mentira,
Será que é comédia,
Será que é divina,
A vida da Atriz?
E se ela um dia despencar do céu,
E se os pagantes exigirem bis,
E se o Arcanjo tirar o chapéu,
E se eu puder entrar na sua vida...
Salvador, 23 de Agosto de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

O AVOADO


Termo muito utilizado em Salvador, que quer dizer distraído. Aquele que “avoa”.
Quando criança e adolescente, tinha uma memória privilegiada.
No Salesiano, havia um “pequeno vestibular”, para que o aluno da 5º série, também chamado Admissão, pudesse ingressar no Ginásio. Português, Matemática, Geografia, História Geral e Ciências Naturais eram as matérias.
Por detestar Matemática, decorei os 250 problemas, (pois os problemas de Matemática eram os do livro adotado no curso), que meu pai resolvera para mim.
Ao respondê-los, sabia até em que pagina do caderno que “enchi” com eles, estava.
Anos depois, ao ensinar meu primo para um concurso, voltei a estudá-la, e a enxerguei com “outros olhos”. É a única ciência exata, e infalível. “Tijolo do Universo”, graças a ela Einstein e outros gênios da Física,como Pitágoras, Galileu Galilei, Carl Sagan, Isaac Newton e Stephen Hawking, decodificaram o Universo e teorias, ainda não comprovadas, foram lançadas.Ela é a “Linguagem Universal”, e no dia em que estabelecermos contato com civilizações extraterrestres, à comunicação será feita através da Matemática, pois 1 + 1 é igual a 2, aqui, em Alfa Centauro, Sírius ou Aldebaran.
Aliada a memória, a distração, o “avoamento”, me pregou “inúmeras peças”.
Quando adolescente, saí de casa só para colocar uma carta no Correio. Quando lá cheguei, “cadê” a carta? Tinha-a deixado em casa!
Quando morava em São Tomé de Paripe, ia para o trabalho em meu carro. Um Fiat 147, que diziam que o nome Fiat, na verdade são as inicias de Fui Iludido Agora é Tarde. Era uma empresa no Pólo Petroquímico, em Camaçari.
Certa feita voltei no ônibus da Empresa e quando cheguei, “cadê” meu carro que deixava debaixo do tamarineiro, em frente lá de casa? Já estava na delegacia de Peri-Perí, para registrar “o furto”, quando descobri as chaves  no bolso. Tinha esquecido que deixara o carro no estacionamento da Empresa.
Quando de certo curso que fiz em um hotel, ao voltar para o quarto, “morto” de cansaço, deitei-me com a intenção de descansar um pouco antes de ir dormir. Acordei com forte luz no rosto e dois seguranças apontando armas para mim. Tinha entrado no quarto vizinho, que coincidentemente estava aberto, pois não reparei o número na porta.
Data de aniversário, nem falar. Mas imperdoável mesmo é esquecer a data de casamento... Quando foi mesmo?
Mas o maior esquecimento foi quando levei minha esposa, no último mês de gestação para realizar a Ultrassonografia que o médico assistente solicitou. O resultado saiu de imediato, e já estava no hall do edifício, quando o porteiro me identificou e disse que o médico que a realizou estava me chamando de volta.                                                                    Preocupado retornei, quando ele me tranquilizou:- Você esqueceu a “mulé”! 
“Homenageando” meu esquecimento fiz uma poesia que em um dos versos diz:

Tenho tonturas.
Talvez sejam da idade.
A cabeça nas alturas, sem a identidade
Do caminho em que vago,
Vira latas da vida, que não me fez afago.

Hoje sou capaz de me perder dentro de casa, sempre fui um “desbussolado”, e só sei se já comi ou não, se o “estomago roncar”.      O tempo é cruel...  
                                                                                           Salvador, 24 de Julho de 2012. 
Sávio Drummond.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

O CASARÃO DOS SETE CANDEEIROS


No Século XIX (1800-1899), o Corredor da Vitória, era cheio de casarões. Abastados comerciantes e fazendeiros lá construíram suas mansões.
Por lá a elite baiana residia, e verdadeiras obras primas de uma época, aonde o material de construção vinha da Europa, geralmente de Paris, então chamada de Cidade Luz, pois iluminava o mundo, com seus poetas, pintores, literatos, cientistas e artistas em geral.Hoje ainda restam alguns dos antigos casarões, testemunha de uma época onde se dizia que “qualquer resfriado se cura em Paris”. 
A decadência das famílias abastadas, fez com que os herdeiros os vendessem, e a “especulação imobiliária”, substituíssem-os por espigões, onde um bando de “noveaux riches” empilha-se em apartamentos.
Restou a “importância” de morar-se no Corredor da Vitória! 
Alguns foram “tombados” pelo Patrimônio Histórico, preservando para os admiradores dessa arquitetura, verdadeiras “pérolas” de um tempo de carruagens, saraus, luvas e cartolas.
Um, em especial, chamava-me a atenção. Imponente, com linhas clássicas, rodeado de belo gramado com estátuas de mármore, repuxos d’água, e um jardim, cuidadosamente tratado.
Parecia que era habitado, embora suas portas e janelas permanecessem fechadas, tal era o excelente estado de conservação. No andar superior 14 janelas que também eram portas, com balaustradas de ferro.
No inferior 12 janelas menores e uma imponente porta de madeira de lei no meio.
Sob o beiral sete candeeiros de bronze resistiam ao tempo, e davam nome ao casarão.
Era o Casarão dos Sete Candeeiros.Sempre que por lá passava, parava diante do portão para admirá-lo.
Certa tarde,  notei que todas suas janelas estavam abertas, grande número de charretes e coches, parados no terreiro gramado, mostravam um movimento incomum no casarão.
Música  vinha do seu interior, e um homem alto, magro, com um nariz aquilino, trajando estranha roupa com um casaco de veludo vermelho, enorme calção verde, meiões brancos, de malha, colado nas pernas,
sapatos de verniz com fivela, chamou-me do outro lado do portão. Usava indumentária renascentista (Renascença Italiana de 1300-1499).
Disse ser o caseiro, e que tinha observado meu interesse pelo prédio, parando em frente ao portão toda vez que por lá passava. Convidou-me para entrar e conhecê-lo.
À medida que aproximávamos da entrada, vi grande numero de pessoas que conversavam no jardim. Homens de luxuosas roupas, algumas bordadas com fios de ouro, barbas e grandes bigodes, com camisas de Colarinho Vitoriano. Mulheres com penteados cuidadosos, maquiagem discreta, muitas jóias, luvas e longos vestidos, alguns com anquinhas. Não havia mais dúvida. Tratava-se de um Sarau.
Um Sarau de oitocentos anos, em pleno século XXI!
Cercando o casarão havia um pequeno rio chamado Aqueronte, e assim que o atravessamos, um servo que atendeu pelo nome de Caronte, mandou que enorme cão, que protegia o casarão ficasse quieto:
 - Quieto Cérbero, amigo!
Ao entrarmos, fomos recebidos por linda jovem, chamada Beatriz, sua noiva
Não pude evitar o pensamento; “Como uma mulher tão bonita foi se apaixonar por um indivíduo tão feio?”                                                                                                                                      Um salão, ricamente decorado, com enorme lustre de cristal, onde ardiam 12 velas, em “braços” de bronze, iluminava o ambiente, que servia de palco para um sarau do Século XIV!
Um jovem de no máximo 18 anos, que assim como muitos homens presentes, usava peruca de cabelos prateados encaracolados, pó de arroz e batom, tocava um cravo.
Nele executou uma música, arrancando aplausos e pedidos de “Bis”, dos convidados.
Informaram-me tratar- se do talentoso jovem austríaco Mozart (Amadeus Volfgang Mozart, 1756-1791) e interpretara uma ária da Ópera A Flauta Mágica, de sua autoria.
Grande mesa de madeira de lei exibia carnes de natureza diversas, e rubro e encorpado vinho, era vertido de grandes recipientes de vidro trabalhado, em taças de legítimo cristal da Bohêmia. A gordura escorria dos lábios de inúmeros comensais, que a limpava nas mangas das camisas, e que com as mãos serviam-se de coxas de frangos, carnes de peru e cordeiro.
As facas eram usadas apenas para cortar as carnes. Não havia talheres.
De vez em quando, um dos comensais se levantava e ia a um compartimento vizinho, voltando, com o rosto avermelhado, “afogueado”, pelo espírito de Baco, para comer mais e mais.
Acompanhei um dos glutões em sua ida ao cômodo vizinho.Tratava-se de um Vomitório, local onde grandes pias de louça, recolhiam a regurgitação, que era feita com a provocação do vômito, ao enfiar-se o dedo na garganta.
Assim procediam para ao esvaziarem o estômago, poderem continuar comendo.
Praticavam a GULA em seu mais “alto grau.” 
De repente, dois participantes desse banquete, desentenderam-se, e de posses das facas usadas para destrinchar as carnes, atiraram-se um contra o outro,  cheios de IRA, tentando matar-se. Feridos foram retirados do ambiente.
Nesse banquete infernal, mais dois participantes, passaram a lutar pela posse de um pedaço de carne.
Com tanta comida, resolveram disputar o mesmo alimento, achando que cada um tinha mais direito do que o outro sobre ele. A AVAREZA, “falava mais alto”.
No andar superior, o homem bateu em uma porta. Não vieram nos atender e ele a abriu. Várias pessoas deitadas dormiam ou conversavam languidamente.
Uma delas se desculpou, dizendo que ouviu baterem à porta, mas a PREGUIÇA não a deixava levantar-se.
Em outro quarto encontramos um homem chorando. Informou-nos que se sentia muito infeliz, por não ter tudo que seu vizinho tinha.
Ele que tinha trabalhado tanto, nunca conseguira ter o que seu vizinho recebera gratuitamente por herança. Parecia que a INVEJA o consumia...
Pessoas corriam para outro quarto vizinho.Lá, um homem estava morto e sua acompanhante chorando nos contou que, após comer muito, começou a sentir-se mal.
Ela quis pedir ajuda, mas ele muito orgulhoso não permitiu, preferindo pedir que o ajudasse a chegar até a charrete, para então procurar socorro médico.Não queria que os outros soubessem que não se sentia bem.
Como era gordo e muito pesado, ela não teve força para ampará-lo e ajudá-lo a chegar até a carruagem.
Na tentativa, caíram e ele morreu antes que pudesse pedir socorro:O ORGULHO o matou.
A última porta ele abriu sem bater.Inúmeros casais faziam sexo sem se importarem com a presença de estranhos. Estavam embriagados de desejo.
Uma das mulheres nos chamou para participar.LUXÚRIA a impelia a fazer coisas que normalmente não faria.Simplesmente, não conseguia viver sua sexualidade de forma equilibrada.
Ao se despedir o homem disse que de 1304 a 1321 escreveu em versos, uma fantástica viagem pelo Céu,
Inferno e Purgatório, que fez ciceroneado pelo poeta grego Virgílio. Experiência que relatou em um poema chamado A Divina Comédia.
Hoje ele me levou a uma viagem pelo casarão, através dos Sete Pecados Capitais.
Era o poeta italiano Dante Alighieri!
                                                                 
Salvador, 02 de Julho de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

REVISÃO

Devia ter sentido mais a chuva em meu rosto. Tê-la buscado e não ter sido surpreendido por ela. Mas tinha medo de pegar um resfriado. 
Devia ter visto mais o Sol nascer na boemia. Mas ele sempre me encontrou estudando ou trabalhando.
Devia ter sentido mais o cheiro das coisas. O mundo é cheiroso. A vida é cheirosa, mas só percebi isso quando pouco olfato me restava. 
Devia ter beijado mais. A meus pais, a minha esposa, meu irmão, minha filha, meus amigos. Mas estava sempre ocupado. Agora sinto falta dos beijos que não dei.
Devia ter ouvido mais. O mundo vibra em uma frequência harmoniosa como em uma sinfonia Divina. Mas o barulho do trabalho me roubou parte da audição. Hoje até o silêncio parece-me cobrar as notas roubadas.
Devia ter sido mais ocioso. Na ociosidade produz-se mais do que pensamos. Mas estava sempre atarefado para perceber isso. Devia ter visto mais. As coisas mais lindas são invisíveis para nós, que nos acostumamos a olhar, não a ver.
Devia ter tido mais Domingos.  Minha semana sempre teve mais dias que a normal, e nenhum deles era feriado.
Devia ter viajado mais, conhecido mais pessoas e lugares. Há sempre gente e locais para conhecer. Mas estava sempre preocupado em chegar.
Devia ter sido menos ansioso. Pois a vida está sempre “vindo”, e saber esperar é uma arte.
Devia ter esperado menos dos outros. Cada um dá daquilo que tem. E muitos têm muito pouco pra dar.
Devia ter perdoado mais. Hoje tenho tanto perdão a pedir.
Devia ter me arriscado mais. Viver é coisa arriscada, e sempre tive medo de arriscar, com medo de perder.
Devia ter sido menos ambicioso. As coisas realmente importantes, como a amizade, os afetos, e o bem, nos são dadas de graça, mas estive sempre preocupado com o preço das coisas.
Devia ter sido mais verdadeiro. As grandes verdades são ditas de formas simples. Olhe as crianças. Elas falam o que lhes vem ao coração.
Devia ter comido menos sal e açúcar. Sempre adocei ou salguei muito as coisas, em busca de um sabor que acabei escondendo pelo excesso.Devia ter encarado a vida de frente. De nada adiantou “dopar-me”, com falsos calmantes, que apenas “me esconderam” a verdade.
Devia ter me preocupado menos. A cada dia “basta o seu mal”.
Devia ter sido mais curioso. Tudo no mundo” tem um por quê”. Deixei de aprender muita coisa.
Devia ter sido menos orgulhoso. A vaidade nada me acrescentou.
Devia ter feito mais serenatas. As janelas das moças ficaram fechadas para meu canto. 
Devia ter aprendido a tocar um instrumento. A música nos aproxima dos anjos.
Devia ter apreciado mais o luar e o por do Sol. São lindos e Deus não cobra nada por eles.
Devia ter aprendido inglês. Os livros seriam menos misteriosos.
Devia ter aprendido a orar. Através da oração falamos com Deus.
Devia ter mais “cicatrizes”.  A pele imaculada mostra apenas uma vida enfadonha.
Devia ter sido uma pessoa melhor. A sensação de “dever não cumprido”, me esmaga.
Devia ter aprendido mais. Vou ter que repetir de ano.


Salvador, 26 de Junho de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O VENTO


Um dos personagens, mais “perturbados” que conheci, foi o vento. 
Aventureiro, conhece o mundo inteiro, pois já deu várias voltas ao globo.
Prestativo, seca as roupas do varal, refresca-nos, agita as folhas das árvores e a palha dos coqueiros, dando-nos poesia de graça.
Da Grécia antiga o Deus Éolo soprando forte, esfuma as velas dos saveiros, levando-os a lugares que só atingimos com o pensamento. Continentes foram descobertos, pelo Homem dito civilizado, graças à força de seu sopro, ao movimentar as Caravelas.
Ele também movia às pás dos Moinhos de Vento, que deram lugar as atuais hélices de altas torres, para geração de energia elétrica.
O Homem muito deve ao vento. Graças a ele, empinava as arraias (pipa, papagaio) quando criança, e era horrível quando ele as levava para diante do Sol. Não dava para ver nada!
À noite, soprando nas frestas da janela, parecia um lamento e muitas vezes me roubava o sono.
Ousado e brincalhão, levanta as saias das mulheres, provocando gritos de susto, e as corando de vergonha. Um devasso esse vento, um horror! 
Ele também “empurra “as nuvens, no azul do céu, e assim participa da obra-prima que Deus nos dá de graça, todo entardecer e amanhecer, quadro que nem os Grandes Mestres sonharam em pintar, e ninguém repara...
O vento traquino, “dando uma” de poeta, também agitou os cabelos negros de minha primeira namorada, e fez com que um perfume de sândalo me embriagasse. Obrigado amigo! 
Quando adolescente, costumava ficar juntamente com um grupo de desocupados, no calçadão do Edifício Sulacap, esquina da Ladeira de São Bento com a Avenida Sete. Ante nossos olhos a Praça Castro Alves, o monumento onde no alto o Poeta dos Escravos, com a mão direita em riste, declama seus versos, o mar azul da Cidade da Bahia e o cinza do perfil das ilhas, do outro lado da baía.
Todo dia, as 17:00 hs, no verão, o vento, “saído do nada” levantava as saias das moças, que costumavam ir com as mães assistirem a missa das cinco na Igreja de São Bento.
Era moda na época, uma saia rodada, chamada Balão, que muito facilitava o trabalho do depravado. Ficávamos apostando cigarro, para ver quem acertava a cor das calcinhas das moças.
Preta e branca eram as preferidas, e um colega nosso, alto, magro com óculos fundo de garrafa, que não errava nunca, acertou certa tarde a improvável cor de uma; Amarela!
Apelidaram-no, a partir desta data de Calçolão!
Certa feita uma moça passou, acompanhada da mãe e o vento devasso, “rápido como quem rouba”, levantou sua saia até o pescoço.
Para surpresa nossa a coitada, que devia estar com algum problema de alergia, estava sem calcinha e depilada! Calçolão não “perdeu tempo”, e exclamou:
- Essa eu não acertaria nunca. Mas, parabéns moça, passou no vestibular!
Até o poeta, no alto do seu “modorrento” pedestal, arriscou uma olhadela de “canto de olho”.
Isso aconteceu há 40 anos, e outro dia vi um humorista contar na televisão, como piada!
Mas é verdade. Calçolão está de prova, e eu estava lá. Juro!

Salvador, 16 de maio de 2012                                                                                                                                                                                            Sávio Drummond.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

MEMÓRIAS DO BORDÉU

Pensei muito se deveria escrever este conto.
Mas, se o escritor alagoano Graciliano Ramos escreveu Memórias do Cárcere,onde narra suas memórias na prisão durante a Ditadura de Getúlio Vargas, porque não posso escrever sobre fatos acontecidos nos bordéis? É verdade que entre eu e Graciliano vai uma distancia muito grande.
Distância que usa Fardão da Academia Brasileira de Letras e se expressa em livros de caras brochuras.Quanto a mim, no máximo em folhetos misturados aos Cordéis.
Também, o colombiano Gabriel Garcia Marques, premio Nobel de Literatura em 1982, escreveu Memória de Minhas Putas Tristes. Porque eu não posso?
 A 1º memória retrocede a 1888 quando Vincent Van Gogh (1853 - 1890),genial pintor holandês, dividiu o aluguel com o artista francês Paul Gougain (1848 - 1903), na cidade de Arles, no sul da França. Em busca de luz, o pintor holandês foi morar em região mais equatorial e por desentendimento com o também pintor Paul Gougain, quis agredi-lo, por discordarem a respeito do Movimento Impressionista batizado por Vincent, de Casa Amarela, em alusão ao sobrado em que moraram por dois meses.
Outros dizem que Van Gogh, foi a um bordel, e emocionado com a história que lhe contou uma prostituta, de que estava naquela vida para alimentar os filhos, acabou dando todo seu dinheiro a ela.Contou a Paul Gougain o que tinha feito. O francês foi verificar a veracidade da história ou se era mais um devaneio do companheiro sonhador.Relatou a Van Gogh, que a mulher o enganara e que “transou” com ela a noite toda. Alucinado, partiu pra cima do francês, que muito mais forte e corpulento, derrubou-o com um safanão e retirou-se. O holandês então, por ter sido enganado pela mulher e por ter sido inferiorizado fisicamente, com a navalha de fazer barba, corta a própria orelha, punindo-se.
 Era o ano de 1888 e estava com 36 anos. Gougain foi pintar as morenas das ilhas francesas do Pacífico Norte, principalmente em Papete, capital do Thaití, e morreu aos 55 anos de Sífilis, sendo enterrado em Dominica, nas ilhas Marquesas.
Um conhecido meu, foi a um Bordel chamado Buraco Doce.Lá encontrou uma colega nossa, que estudava o Científico de dia e era “Garota de Programa” à noite. Assim custeava seus estudos e a pensão onde morava. Hoje é médica famosa. 
Porém, entrou para os anais da literatura popular o discurso que um conhecido fez à beira do caixão, em um velório em um “puteiro” do Pelourinho. Um conhecido farrista dos anos 50, Aristeu Carrasco Dellos Chíbius (tem cada sobrenome estrangeiro...), foi encontrado morto no quartinho que alugava no Pelô. Devido aos antecedentes de cachaceiro, o médico assinou o Atestado de Óbito como; “Complicações decorrentes de Cirrose Hepática”.Os “amigos de copo” se quotizaram e compraram um caixão, e seus conhecidos, personagens das noites baianas, bêbados e prostitutas foram velar-lhe em um Bordel no Pelourinho, chamado Anjo Azul.Como a receptividade foi boa, num instante apareceu Violão, Cavaquinho,Timbau e até uma Flauta Transversal.
O velório cumpria o desejo do falecido, que pediu para ser velado pelos amigos, com muito samba e cachaça. Nada de lágrimas. Também não deixou viúva ou filhos que o pranteassem.Os agiotas e bancos, a quem devia “se lenharam”. Não restou ninguém para pagar as dívidas.
Em meio ao “sambão”, ou melhor, velório, o repentista famoso, Romeu do Amor Divino, admirado por sua capacidade de improvisar, começou:


Quem morreu , morreu.
Antes ele do que eu.Quem morreu, morreu,
Antes ele do que eu.
Aristeu, Aristeu.
Você se fodeu. . .

Romeu Bahia dos Santos, o mais culto do grupo, e que se saiba, nunca riu, foi escolhido pelo estranho grupo para dizer algumas palavras de despedida.
- Estamos aqui reunidos, com os olhos rasos d´água para despedirmos-nos de nosso amigo Aristeu, o popular “Copo Furado”... 
A prostituta Maria Tanajura fez rima com voz de “frete”:
- Romeu, seu cacete é meu!
Fazendo de conta que não tinha ouvido, continuou Romeu.- Neste momento solene, pranteamos nosso amigo, que faleceu”... 
E como cachaça e velório não combinam, exclamaram: 
- Quem faleceu se fodeu, antes ele do que eu! 
O companheiro do lado de Aristeu, muito contrito, chapéu na mão, intercede:
- Até você Chico Navalhada...
O Sr. Francisco das Virgens, que ostentava enorme cicatriz de antiga navalha no rosto, e que detestava o apelido, sentindo-se ofendido, retrucou:
- Navalhada é a puta que te pariu!
Era o que faltava para a pancadaria “comer solta”...Parecia a letra de certa canção que diz: “’A orquestra tocando alto pra Polícia não ouvir, quem estava fora não entrava e quem estava dentro não saía”...
Mas apesar do barulho do conjunto, ouviram e chamaram a Polícia.
O soldado Jamanta, legítimo representante das terras baianas, crioulo de dois metros de altura, juntamente com seus “meganhas”, acabou com a briga, batendo em “todo mundo”, e a todos levou para a delegacia, inclusive o defunto com o caixão, já meio escangalhado, pois no tumulto caíram sobre ele.
O delegado fez o B.O. e manteve todos na delegacia, até que os ”vapores do álcool” desaparecessem.No outro dia soltou os brigões e o defunto.
Como castigo tiveram que carregar o caixão de volta até o Pelô.
Quando já estavam às portas do Anjo Azul, alguém tropeçou nas centenárias pedras “cabeça de negro”, e foi ao chão juntamente com o caixão que se espatifou definitivamente.
Será que o Copo Furado se incomoda se for enterrado em uma rede?
- É melhor em uma rede do que sem nada. Além do quê, defunto não tem vontade. Não há mais dinheiro, nem tempo, pois o finado já “ta” cheirando mal.
E assim, finalmente, Aristeu foi enterrado, sob belos “pontos” de Candomblé, entoados por Mães de Santo e Ialorixás.

Em sua lápide, apareceu misteriosamente (terá sido o Romeu?) escrito:

Finalmente aqui descansa Aristeu.
Cachaceiro, mulherengo e putanheiro.
Deixou saudades o amigo meu, 
E as prostitutas choram o companheiro.



Salvador, 08 de Abril de2012





Sávio Drummond.