Assustada pulou em nossa cama, camuflando-se entre as cobertas.
Já tinha assistido a esta cena várias vezes, e o motivo era sempre o mesmo: medo de dormir sozinha.
Só que dessa vez, em lugar de acolher seu medo, experimentei conversar com ela, esforçando-me em voltar à infância e deixando fluir livremente tudo que me assustava quando de sua idade. Assim, travamos este insólito diálogo, que jamais esqueci:- Com medo dele de novo, não é? Basta botar o pé pra fora que o bicho debaixo da cama tenta pegar.
- Como é que você sabe?
- Ora também já fui criança!
- É! Ele fica esperando, mas não consegue. Eu sou mais rápida e sempre puxo o pé antes dele pegar. Sem falar naqueles fantasmas fininhos e transparentes que moram atrás do armário e que saem flutuando, que a luz se apaga, pra vir sussurrar no seu ouvido; - “Você está com meeeeeedo”...
- E a bruxa que desce do telhado pra roer nossas unhas?
- Isso mesmo. Temos que dormir com as mãos fechadas e os braços encolhidos.
- Também conheci essa. E o homem atrás do vidro da janela, sempre olhando a gente?
- É quando a gente vira, ele se abaixa a tempo e a gente nunca consegue vê-lo.
- Mas ele sempre está lá espiando...
- Sempre. Eu nunca o vi, mas tenho certeza que é careca!
- Quê coincidência! Eu sempre achei que ele fosse careca, mas nunca contei isso a ninguém.
Mas você já parou pra pensar, que eles não lhe fazem mal? Na verdade são até companheiros nesses momentos de escuridão e solidão?
Chegará um dia que daremos uma festa e convidaremos todos eles. A bruxa roedora de unhas, os fantasmas fininhos, o bicho da cama e o careca da janela.
Conversaremos sobre suas famílias, seus problemas e quando isso acontecer eles ficarão seus amigos e lamentavelmente, filha, nunca mais voltarão. Quando esse dia chegar é sinal de que você está crescendo, e a magia maravilhosa que existe em sua cabecinha, que lhe permite conversar com os bichos, alcançar as nuvens mais altas nas asas dos pássaros, fazer de um caixote velho um palácio encantado cheio de fadas, madrinhas de suas bonecas, estará desaparecendo e dando lugar aos sonhos de gente grande.
Mas, gente grande é tão chata filha, filha. Não tem imaginação. Só conseguem sonhar com coisas possíveis. Alguns já não conseguem sonhar, só desejar.
Por isso filhinha, entenda que esses personagens vêem do mesmo lugar que as fadas e os príncipes, e que não lhes querem mal. Certamente assustar é da natureza deles. Como fazer encantamento é da natureza das fadas e governar povos felizes em reinos floridos é ofício dos príncipes encantados.
Então diga boa noite a eles e vamos todos dormir. Porque apesar dos meus fantasmas, eu já cresci e estou com um sono danado.
Salvador, 30 de Janeiro de 1990.
Sávio Drummond.
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