quarta-feira, 25 de julho de 2012

O CASARÃO DOS SETE CANDEEIROS


No Século XIX (1800-1899), o Corredor da Vitória, era cheio de casarões. Abastados comerciantes e fazendeiros lá construíram suas mansões.
Por lá a elite baiana residia, e verdadeiras obras primas de uma época, aonde o material de construção vinha da Europa, geralmente de Paris, então chamada de Cidade Luz, pois iluminava o mundo, com seus poetas, pintores, literatos, cientistas e artistas em geral.Hoje ainda restam alguns dos antigos casarões, testemunha de uma época onde se dizia que “qualquer resfriado se cura em Paris”. 
A decadência das famílias abastadas, fez com que os herdeiros os vendessem, e a “especulação imobiliária”, substituíssem-os por espigões, onde um bando de “noveaux riches” empilha-se em apartamentos.
Restou a “importância” de morar-se no Corredor da Vitória! 
Alguns foram “tombados” pelo Patrimônio Histórico, preservando para os admiradores dessa arquitetura, verdadeiras “pérolas” de um tempo de carruagens, saraus, luvas e cartolas.
Um, em especial, chamava-me a atenção. Imponente, com linhas clássicas, rodeado de belo gramado com estátuas de mármore, repuxos d’água, e um jardim, cuidadosamente tratado.
Parecia que era habitado, embora suas portas e janelas permanecessem fechadas, tal era o excelente estado de conservação. No andar superior 14 janelas que também eram portas, com balaustradas de ferro.
No inferior 12 janelas menores e uma imponente porta de madeira de lei no meio.
Sob o beiral sete candeeiros de bronze resistiam ao tempo, e davam nome ao casarão.
Era o Casarão dos Sete Candeeiros.Sempre que por lá passava, parava diante do portão para admirá-lo.
Certa tarde,  notei que todas suas janelas estavam abertas, grande número de charretes e coches, parados no terreiro gramado, mostravam um movimento incomum no casarão.
Música  vinha do seu interior, e um homem alto, magro, com um nariz aquilino, trajando estranha roupa com um casaco de veludo vermelho, enorme calção verde, meiões brancos, de malha, colado nas pernas,
sapatos de verniz com fivela, chamou-me do outro lado do portão. Usava indumentária renascentista (Renascença Italiana de 1300-1499).
Disse ser o caseiro, e que tinha observado meu interesse pelo prédio, parando em frente ao portão toda vez que por lá passava. Convidou-me para entrar e conhecê-lo.
À medida que aproximávamos da entrada, vi grande numero de pessoas que conversavam no jardim. Homens de luxuosas roupas, algumas bordadas com fios de ouro, barbas e grandes bigodes, com camisas de Colarinho Vitoriano. Mulheres com penteados cuidadosos, maquiagem discreta, muitas jóias, luvas e longos vestidos, alguns com anquinhas. Não havia mais dúvida. Tratava-se de um Sarau.
Um Sarau de oitocentos anos, em pleno século XXI!
Cercando o casarão havia um pequeno rio chamado Aqueronte, e assim que o atravessamos, um servo que atendeu pelo nome de Caronte, mandou que enorme cão, que protegia o casarão ficasse quieto:
 - Quieto Cérbero, amigo!
Ao entrarmos, fomos recebidos por linda jovem, chamada Beatriz, sua noiva
Não pude evitar o pensamento; “Como uma mulher tão bonita foi se apaixonar por um indivíduo tão feio?”                                                                                                                                      Um salão, ricamente decorado, com enorme lustre de cristal, onde ardiam 12 velas, em “braços” de bronze, iluminava o ambiente, que servia de palco para um sarau do Século XIV!
Um jovem de no máximo 18 anos, que assim como muitos homens presentes, usava peruca de cabelos prateados encaracolados, pó de arroz e batom, tocava um cravo.
Nele executou uma música, arrancando aplausos e pedidos de “Bis”, dos convidados.
Informaram-me tratar- se do talentoso jovem austríaco Mozart (Amadeus Volfgang Mozart, 1756-1791) e interpretara uma ária da Ópera A Flauta Mágica, de sua autoria.
Grande mesa de madeira de lei exibia carnes de natureza diversas, e rubro e encorpado vinho, era vertido de grandes recipientes de vidro trabalhado, em taças de legítimo cristal da Bohêmia. A gordura escorria dos lábios de inúmeros comensais, que a limpava nas mangas das camisas, e que com as mãos serviam-se de coxas de frangos, carnes de peru e cordeiro.
As facas eram usadas apenas para cortar as carnes. Não havia talheres.
De vez em quando, um dos comensais se levantava e ia a um compartimento vizinho, voltando, com o rosto avermelhado, “afogueado”, pelo espírito de Baco, para comer mais e mais.
Acompanhei um dos glutões em sua ida ao cômodo vizinho.Tratava-se de um Vomitório, local onde grandes pias de louça, recolhiam a regurgitação, que era feita com a provocação do vômito, ao enfiar-se o dedo na garganta.
Assim procediam para ao esvaziarem o estômago, poderem continuar comendo.
Praticavam a GULA em seu mais “alto grau.” 
De repente, dois participantes desse banquete, desentenderam-se, e de posses das facas usadas para destrinchar as carnes, atiraram-se um contra o outro,  cheios de IRA, tentando matar-se. Feridos foram retirados do ambiente.
Nesse banquete infernal, mais dois participantes, passaram a lutar pela posse de um pedaço de carne.
Com tanta comida, resolveram disputar o mesmo alimento, achando que cada um tinha mais direito do que o outro sobre ele. A AVAREZA, “falava mais alto”.
No andar superior, o homem bateu em uma porta. Não vieram nos atender e ele a abriu. Várias pessoas deitadas dormiam ou conversavam languidamente.
Uma delas se desculpou, dizendo que ouviu baterem à porta, mas a PREGUIÇA não a deixava levantar-se.
Em outro quarto encontramos um homem chorando. Informou-nos que se sentia muito infeliz, por não ter tudo que seu vizinho tinha.
Ele que tinha trabalhado tanto, nunca conseguira ter o que seu vizinho recebera gratuitamente por herança. Parecia que a INVEJA o consumia...
Pessoas corriam para outro quarto vizinho.Lá, um homem estava morto e sua acompanhante chorando nos contou que, após comer muito, começou a sentir-se mal.
Ela quis pedir ajuda, mas ele muito orgulhoso não permitiu, preferindo pedir que o ajudasse a chegar até a charrete, para então procurar socorro médico.Não queria que os outros soubessem que não se sentia bem.
Como era gordo e muito pesado, ela não teve força para ampará-lo e ajudá-lo a chegar até a carruagem.
Na tentativa, caíram e ele morreu antes que pudesse pedir socorro:O ORGULHO o matou.
A última porta ele abriu sem bater.Inúmeros casais faziam sexo sem se importarem com a presença de estranhos. Estavam embriagados de desejo.
Uma das mulheres nos chamou para participar.LUXÚRIA a impelia a fazer coisas que normalmente não faria.Simplesmente, não conseguia viver sua sexualidade de forma equilibrada.
Ao se despedir o homem disse que de 1304 a 1321 escreveu em versos, uma fantástica viagem pelo Céu,
Inferno e Purgatório, que fez ciceroneado pelo poeta grego Virgílio. Experiência que relatou em um poema chamado A Divina Comédia.
Hoje ele me levou a uma viagem pelo casarão, através dos Sete Pecados Capitais.
Era o poeta italiano Dante Alighieri!
                                                                 
Salvador, 02 de Julho de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

REVISÃO

Devia ter sentido mais a chuva em meu rosto. Tê-la buscado e não ter sido surpreendido por ela. Mas tinha medo de pegar um resfriado. 
Devia ter visto mais o Sol nascer na boemia. Mas ele sempre me encontrou estudando ou trabalhando.
Devia ter sentido mais o cheiro das coisas. O mundo é cheiroso. A vida é cheirosa, mas só percebi isso quando pouco olfato me restava. 
Devia ter beijado mais. A meus pais, a minha esposa, meu irmão, minha filha, meus amigos. Mas estava sempre ocupado. Agora sinto falta dos beijos que não dei.
Devia ter ouvido mais. O mundo vibra em uma frequência harmoniosa como em uma sinfonia Divina. Mas o barulho do trabalho me roubou parte da audição. Hoje até o silêncio parece-me cobrar as notas roubadas.
Devia ter sido mais ocioso. Na ociosidade produz-se mais do que pensamos. Mas estava sempre atarefado para perceber isso. Devia ter visto mais. As coisas mais lindas são invisíveis para nós, que nos acostumamos a olhar, não a ver.
Devia ter tido mais Domingos.  Minha semana sempre teve mais dias que a normal, e nenhum deles era feriado.
Devia ter viajado mais, conhecido mais pessoas e lugares. Há sempre gente e locais para conhecer. Mas estava sempre preocupado em chegar.
Devia ter sido menos ansioso. Pois a vida está sempre “vindo”, e saber esperar é uma arte.
Devia ter esperado menos dos outros. Cada um dá daquilo que tem. E muitos têm muito pouco pra dar.
Devia ter perdoado mais. Hoje tenho tanto perdão a pedir.
Devia ter me arriscado mais. Viver é coisa arriscada, e sempre tive medo de arriscar, com medo de perder.
Devia ter sido menos ambicioso. As coisas realmente importantes, como a amizade, os afetos, e o bem, nos são dadas de graça, mas estive sempre preocupado com o preço das coisas.
Devia ter sido mais verdadeiro. As grandes verdades são ditas de formas simples. Olhe as crianças. Elas falam o que lhes vem ao coração.
Devia ter comido menos sal e açúcar. Sempre adocei ou salguei muito as coisas, em busca de um sabor que acabei escondendo pelo excesso.Devia ter encarado a vida de frente. De nada adiantou “dopar-me”, com falsos calmantes, que apenas “me esconderam” a verdade.
Devia ter me preocupado menos. A cada dia “basta o seu mal”.
Devia ter sido mais curioso. Tudo no mundo” tem um por quê”. Deixei de aprender muita coisa.
Devia ter sido menos orgulhoso. A vaidade nada me acrescentou.
Devia ter feito mais serenatas. As janelas das moças ficaram fechadas para meu canto. 
Devia ter aprendido a tocar um instrumento. A música nos aproxima dos anjos.
Devia ter apreciado mais o luar e o por do Sol. São lindos e Deus não cobra nada por eles.
Devia ter aprendido inglês. Os livros seriam menos misteriosos.
Devia ter aprendido a orar. Através da oração falamos com Deus.
Devia ter mais “cicatrizes”.  A pele imaculada mostra apenas uma vida enfadonha.
Devia ter sido uma pessoa melhor. A sensação de “dever não cumprido”, me esmaga.
Devia ter aprendido mais. Vou ter que repetir de ano.


Salvador, 26 de Junho de 2012.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

O VENTO


Um dos personagens, mais “perturbados” que conheci, foi o vento. 
Aventureiro, conhece o mundo inteiro, pois já deu várias voltas ao globo.
Prestativo, seca as roupas do varal, refresca-nos, agita as folhas das árvores e a palha dos coqueiros, dando-nos poesia de graça.
Da Grécia antiga o Deus Éolo soprando forte, esfuma as velas dos saveiros, levando-os a lugares que só atingimos com o pensamento. Continentes foram descobertos, pelo Homem dito civilizado, graças à força de seu sopro, ao movimentar as Caravelas.
Ele também movia às pás dos Moinhos de Vento, que deram lugar as atuais hélices de altas torres, para geração de energia elétrica.
O Homem muito deve ao vento. Graças a ele, empinava as arraias (pipa, papagaio) quando criança, e era horrível quando ele as levava para diante do Sol. Não dava para ver nada!
À noite, soprando nas frestas da janela, parecia um lamento e muitas vezes me roubava o sono.
Ousado e brincalhão, levanta as saias das mulheres, provocando gritos de susto, e as corando de vergonha. Um devasso esse vento, um horror! 
Ele também “empurra “as nuvens, no azul do céu, e assim participa da obra-prima que Deus nos dá de graça, todo entardecer e amanhecer, quadro que nem os Grandes Mestres sonharam em pintar, e ninguém repara...
O vento traquino, “dando uma” de poeta, também agitou os cabelos negros de minha primeira namorada, e fez com que um perfume de sândalo me embriagasse. Obrigado amigo! 
Quando adolescente, costumava ficar juntamente com um grupo de desocupados, no calçadão do Edifício Sulacap, esquina da Ladeira de São Bento com a Avenida Sete. Ante nossos olhos a Praça Castro Alves, o monumento onde no alto o Poeta dos Escravos, com a mão direita em riste, declama seus versos, o mar azul da Cidade da Bahia e o cinza do perfil das ilhas, do outro lado da baía.
Todo dia, as 17:00 hs, no verão, o vento, “saído do nada” levantava as saias das moças, que costumavam ir com as mães assistirem a missa das cinco na Igreja de São Bento.
Era moda na época, uma saia rodada, chamada Balão, que muito facilitava o trabalho do depravado. Ficávamos apostando cigarro, para ver quem acertava a cor das calcinhas das moças.
Preta e branca eram as preferidas, e um colega nosso, alto, magro com óculos fundo de garrafa, que não errava nunca, acertou certa tarde a improvável cor de uma; Amarela!
Apelidaram-no, a partir desta data de Calçolão!
Certa feita uma moça passou, acompanhada da mãe e o vento devasso, “rápido como quem rouba”, levantou sua saia até o pescoço.
Para surpresa nossa a coitada, que devia estar com algum problema de alergia, estava sem calcinha e depilada! Calçolão não “perdeu tempo”, e exclamou:
- Essa eu não acertaria nunca. Mas, parabéns moça, passou no vestibular!
Até o poeta, no alto do seu “modorrento” pedestal, arriscou uma olhadela de “canto de olho”.
Isso aconteceu há 40 anos, e outro dia vi um humorista contar na televisão, como piada!
Mas é verdade. Calçolão está de prova, e eu estava lá. Juro!

Salvador, 16 de maio de 2012                                                                                                                                                                                            Sávio Drummond.