quarta-feira, 31 de julho de 2013

O INÍQUO

Oitenta anos tinha Moisés quando subiu ao Sinai pela segunda vez para o reencontro com Deus. 
Após sua primeira ida ao Sinai, quando por lá demorou 40 dias, o povo reunido a sua espera, julgando-o morto, derreteu as jóias e fizeram um boi de ouro, e passando a adorá-lo, assim como faziam ao Deus Ápis, no Egito.
Deus após a “Farra do Boi de Ouro” resolveu acrescentar mais cinco aos dez, tradicionalmente conhecidos.
Alquebrado pelos anos, e pelo jejum, (assim como na primeira ida, por lá permaneceu sem comer) na descida do íngreme caminho, escorrega, e uma das três pedras espatifa-se. Sim eram três as tábuas da lei, com cinco mandamentos em cada, e não duas como conta a História oficial, pois cinco mandamentos foram acrescentados aos originais, diante da mais espetacular esbórnia que aqueles idos tempos conheceram.
Árduo foi o regresso do ancião, equilibrando-se com uma pedra em cada mão, e a terceira em dezenas de pedaços cuidadosamente recolhidos na túnica enrolada à guisa de mochila.
Colocada ordem na casa, procura Moisés por Leví, individuo conhecido  por todos por sua habilidade em esculpir as pedras e que atendia também pelo apelido de “O Iníquo” graças aos seus pendores pelo vinho e mulheres. Enfim, artesão do cinzel e dos vícios, que fazia por justa e merecida alcunha.
Foram encontrá-lo dias após, bem para o norte, lá pelas bandas do Oasis de Palmira, na tenda e nos braços morenos de bela Madianita, de grandes olhos cor de azeitona e grosso aro de ouro fincado no nariz.
Com ela havia se refugiado assim que a matança dos vinte e três mil começara a mando de Moisés, para castigar os que haviam participado da “Farra do Boi de Ouro”.
Sob protesto e jugo de três robustos mensageiros, Leví é levado ao patriarca que o esperava a frente de sua tenda de peles negras de cabra, com sua costumeira cara de poucos amigos e pesada sacola de pele de carneiro."Sujeito de mal com a vida, pensa entre os vapores do álcool o Iníquo. É o que dá falar tanto com Deus. Acaba por copiar-se-lhe os trejeitos..."
Frente ao líder tenta aprumar-se, mas seu estado é deplorável. De cara amarrotada, olhos remelentos, cabelos desgrenhados, lábios borrados de carmim onde ainda ardiam os beijos pagãos, a túnica imunda, exibindo manchas de diversas cores e procedências, e exalando uma mistura de repugnantes odores, onde sobressaíam o álcool das fermentadas e legítimas uvas de Sharon, o Aloé com seu cheiro de sepulcro e um esmagador “bodum” de suor que aos outros engolia...
Leví oscila em torno de um eixo imaginário, enquanto o vento fresco do deserto, àquela altura do ano, lembra-lhe o roçar delicado das mãos madianitas a que se entregara nos últimos dias. Na verdade, aguardara a chegada dos vingadores com uma certeza que nem todo o vinho do mundo afogaria, pois desde que a matança dos infiéis da apostasia do bezerro de ouro começara, sabia que sua hora chegaria, já que inclemente era o braço do Deus de Moisés.
E não adiantaria argumentar que entrara na farra por ceder aos apelos de sua natureza, e que não poderia crer ou amar um Deus incapaz de relevar suas fraquezas, de aceitá-lo como um simples homem amante da alegria, das músicas, do vinho e acima de tudo das mulheres. Ah... as mulheres. Nelas sim esse Deus tão raivoso mostrara sua natureza Divina. Talvez num dia inspirado pelo vinho de Sharon que o fizera esquecer-se das suas obrigações de Deus, e que não entendia porque o obrigava a ser tão sanguinário quanto Astarte, Moloc ou qualquer um dos muitos que conheceu no Egito. Melhor acabar tudo ali mesmo...
- Leví. E a voz de Moisés soou estranhamente amiga, fazendo-o abrir os olhos para certificar-se que era o patriarca e não os “espíritos do vinho” que lhes falavam aos ouvidos de dentro para fora.
- Leví, mandei buscar-te por que preciso de sua habilidade no trato com as pedras. Dou-te importante missão em troca de sua vida miserável. 
Nesta sacola estão os cinco mandamentos que o Senhor acrescentou em minha segunda subida ao Sinai. Não me foi dado tempo de lê-los tal a pressa em retornar, diante dos fatos acontecidos na minha ausência anterior. Por azar ou castigo, caiu-se-me a pedra e com ela espatifou-se o conteúdo. Recomponha a sua forma original e restitua-me o que nela está escrito, para que eu possa fazer cumprir-se a vontade do Senhor, e darei por esquecidas todas as suas iniquidades, tornando-te agradável ante aos olhos de Deus.
Um compenetrado Leví retira-se da presença do patriarca carregando a sacola com os fragmentos da pedra sagrada, onde o Senhor de próprio punho escrevera, e por um bom par de dias não “deu as caras” pelo acampamento, enfurnado em seu “cafifo” a dedicar-se a mais importante das encomendas que recebera em toda sua iníqua vida.
Recomposta a pedra, profunda tristeza toma conta de Leví. Dessa vez o Senhor “radicalizara geral”. Que graça teria a vida a partir daquele momento? Qualquer deslize e a morte era certa. Mas sua vida era feita de deslizes...
Cumprida a tarefa, comparece Leví à tenda de Moisés. Impecável, em colorida túnica nova, barbeado e recendendo exageradamente a perfumes raros, como é comum aos desacostumados ao uso.
Moisés sorridente, de longas barbas e cabelos brancos, lembrava Papai Noel e não o austero e carrancudo Homem de Deus que sempre fora.
Recebe do iníquo a pedra trabalhada, e numa primeira e geral inspeção aprova-a em largo sorriso de dentes surpreendentemente fortes e bonitos para a idade, ostentados de orelha a orelha. À medida que “corre” os olhos pelos parágrafos, sua expressão começa a mudar inquietando Leví. Aos poucos, olhos na pedra, olhos no Leví, muda de bonachão a colérico, enquanto o atormentado artesão olha para os lados, disfarçando uma desatenção, quando na verdade estuda o caminho mais curto para uma possível fuga que adivinha iminente.
Olhos arregalados, suando por todos os poros, com lábios trêmulos, rosto rubro, prestes a explodir em cólera sanguinária, constata o Patriarca toda a perícia e safadeza do Iníquo.Lá estavam gravados em baixo relevo, com a caligrafia irretocável de Deus, os cinco parágrafos tão ansiosamente esperados, mas seguramente não os originais, tamanha a permissividade do texto. 
E ainda por cima tivera o “topete” de assinar J H V H, o nome impronunciável de Deus!
A multidão que aguardava o desenrolar deste encontro, quando finalmente Leví, o Iníquo, tornar-se-ia um discípulo do Senhor, viram-no irromper porta afora, em desabalada correria, que provocaria inveja ao mais rápido atleta grego, de túnica arregaçada acima dos joelhos, para assim correr melhor, seguido de perto, em vôo rasante, por brilhante basalto negro, que por pouco não lhe acerta a nuca, deitando-lhe os miolos ao sol, não fosse a ginga rápida com que o salafrário desviou-se da rota de colisão, e além dos limites do acampamento, tomar o rumo do norte, onde braços morenos e carinhosos certamente o aguardavam.
Não se sabe por que Moisés desistiu de castigar o Iníquo, contentando-se em considerá-lo excluído do Povo de Deus, nem se retornou ao Sinai. Sabe-se apenas dos 10 conhecidos mandamentos.
Poupou-nos assim Leví, o Iníquo, quer por inspiração de gênio com visão histórica, ou simples espertalhão agindo em causa própria, de aturarmos mais cinco proibições, que se não nos tornou mais fácil o caminho ao Paraíso, seguramente facilitou-nos a vida, preservando-nos algumas alegrias.

Salvador, Fevereiro de 2011
Sávio Drumond


quarta-feira, 17 de julho de 2013

UTI

Em 1854, durante a Guerra da Crimeia, na qual o Reino Unido, França e Turquia lutaram contra a Rússia, a Enfermeira Florence Nightingale, objetivando dar assistência aos feridos, criou a 1ª sala destinada à esta finalidade.
Com a 1ª (1914-1918), e a 2ª (1936-1945) Guerras Mundiais, as salas de suporte à vida, equiparam-se com a descoberta de novas medicações e novos equipamentos.
Incrível, mas a tecnologia médica evolui muito mais em períodos de conflitos.
A ultra-sonografia, só foi entregue à Comunidade Científica, 10 anos após sua descoberta, pois era “Segredo Militar”, utilizada na identificação e comunicação dos satélites espaciais, pois a URSS não “podia saber". Com Monitores Cardíacos, que vigiam a frequência e o ritmo cardíaco, disparando alarmes sonoros, conforme alterações da frequência e ritmo do coração, Oxímetros Digitais que informam “24 horas por dia”, a quantidade de O2, no sangue do paciente, sondas que medem a pressão dentro dos vasos e coração, aparelhos que fazem a medida de O2, CO2 e eletrólitos, permitindo suas correções, medida da Pressão Venosa Central (P.V.C.), indispensável para o tratamento da Síndrome do Choque, muitos doentes conseguiram “enganar” a morte e viver por mais tempo.
Muitos corações, devido ao uso de Marcas-Passos, continuam a bater em tórax de indivíduos mortos.  Substâncias que, se injetadas em tempo hábil em Coronárias no Infarto Agudo do Miocárdio, Carótidas nos Acidentes Vasculares Cerebrais (A.V.Cs. / Derrames), Artérias Pulmonares nos Tromboembolismos Pulmonares, Artérias Mesentéricas em Infartos Intestinais,desfazem coágulos, e muitos indivíduos seguramente sobrevivem, em situações limites, que antigamente os matariam. 
A assistência intensiva a pacientes nestas salas internados, deu origem a novas especializações como o Médico Intensivista, a Enfermeira Intensivista e o Fisioterapeuta  Geral e Respiratório, para evitar lesões de Traqueia e em doentes entubados e Escaras de Decúbito e Pneumonia de Decúbito naqueles acamados por muito tempo.Que ironia, e ainda se morre de Apendicite, Diarreia, Desidratação, Tuberculose, de parto e todas as doenças relacionadas à miséria.
Até a Bíblica Lepra, está voltando com “toda força”, na Amazônia.
Na U.T.I. do H.G.V. (Hospital Getúlio Vargas), o Pronto Socorro, quando estudante, vivi situações que gostaria de esquecer.
Um professor nosso, Anestesiologista, era chefe da U.T.I.
 Embora nunca tivesse sido interno desta Unidade, costumava visitá-la com frequência, não só para aprender alguma coisa, como acompanhando os doentes que atendia na Emergência, e a ela os encaminhava.
Certa feita, levei um doente em Coma, vítima de acidente automobilístico.
Após minucioso exame, o Mestre reconheceu que o doente precisava de U.T.I.  e assistência respiratória, pois o tínhamos entubado na sala de Emergência, e a ventilação pulmonar, mantida manualmente.
Após perguntar ao residente (estava atendendo juntamente conosco na sala de Emergência), quem não “tinha mais jeito”, e que estava ocupando um respirador,examinou o prontuário e minuciosamente o doente, e quando os reflexos mais profundos, como o Corneal  já não mais existiam, fazia aquilo que todos nós queríamos fazer, mas que não tínhamos coragem: Desligava o Respirador!
Depois, após breve silêncio, quando parecia que rezava, mandava subir mais dois, pois iria desligar mais dois outros aparelhos, pois dois moribundos, estavam ocupando respiradores que poderiam salvar outros infelizes que tinham chance de viver.
Graças a maus políticos e más políticas, o Mestre se investia de Deus, decidindo quem viveria e morreria.
Será que a situação mudou?                                                                                                                                   Salvador, 01 de Maio de 2012
                                                                                                                                             Sávio Drummond.

Nota: O conto escrito em 2012, refere a situações ocorridas na década de 1970.