sexta-feira, 20 de abril de 2012

O HOMEM QUE ENCOLHEU


Deram-lhe o nome de Atanásio ao nascer. Gosto do pai, homem de letras e livros, que já entrado em anos, exultou com o nascimento do primogênito que trouxera alegria ao casarão em que viviam. 
 - Nome de Papa. Vai atanazar a vida de muita gente! Propalava o velho intelectual, jornalista talentoso, admirado por muitos e temido por outros mais, com passagem na política e fortes tendências esquerdistas.   
No velho casarão, herança dos avôs, arrodeado da mais fina flor da intelectualidade local, crescia
Saraus líteromusicais, comuns à sociedade elitizada, ali eram frequentes.  No salão de sólido tabuado, com pinturas de faunos com harpas e flautas, espalhado pelas paredes ouviu as primeiras notas e versos, entoados coma fluência e sentimento dos poetas e artistas que frequentavam sua casa.
No salão das refeições, com paredes igualmente pintadas com motivos florais, onde Ceres derramava os primeiros frutos e flores da primavera, a pequena família reunia-se em torno de grande mesa de madeira de lei.
Sua mãe desdobrava-se em mimos, dedicando-lhe o extremado amor que só as mães são capazes de dar, e que ao primeiro espirro, metia-o debaixo das cobertas, receosa dos pleurises e basites, tão comumente diagnosticadas pelos doutos da época.
Equilibrando-se entre a meiguice da mãe e a disciplina paterna, Atanásio crescia. Sempre entre os melhores da turma, não se permitia notas baixas, pois, a terna cobrança dos genitores, atingindo-o com um simples olhar, obrigavam-no a esforçar-se por estar entre os primeiros.
No Colégio dos  Padres, onde estudava, tirava as melhores notas, mas era visível que estas eram resultado de grande esforço, e não fruto de uma inteligência privilegiada, como julgavam os pais.  Na adolescência namorou Clara, filha também única de abastada família que morava na mesma rua. Pequenina, com pele de Jasmim, e olhos transparentes como manhãs de verão, era a imagem da fragilidade
Em seu sorriso de luz, acariciava-lhe o rosto com seus dedos longos e mãos macias, onde finas veias azuis transpareciam, enquanto falava palavras apaixonadas num timbre de águas puras que brotam do mais fundo da terra. 
Assim era Clara. Parecia a Santa do altar do colégio. Tão menina e tão segura de si. Muito mais forte que sua débil figura
Numa manhã de inverno despediu-se de Clara, que juntamente com a família mudava-se para o Sul, em busca de tratamento para a enfermidade que lhe corroia os pulmõesRecostada em uma almofada, mais transparentes que nunca, sorriu-lhe pela última vez com seus lábios ligeiramente azulados, enquanto o Citroën preto subia a ladeira. Nunca mais teve notícias dela. Não ficou triste. Apenas uma sensação de vazio no peito que nunca sentira antes e que não conseguia entender... 
Pouco depois lhe morreu o pai. Permaneceu todo tempo ao lado do caixão, olhos fixos no rosto magro de pele clara e vasta cabeleira ainda incrivelmente negra, e pensava como parecia ridículo um rosto tão viril arrodeado de flores. Por vezes sentiu ímpetos de arrancar todas aquelas flores, mas apenas ficou lá, com aquele vazio cada vez maior e que não conseguia entender...
Com a morte do genitor, muitas mudanças aconteceram no casarão.Com a modesta pensão que lhe deixou o marido, sua mãe teve que dispensar os criados, ficando apenas aquela que viera junto com seu casamento e as bagagens, e que a conhecia desde criança Os Saraus tornaram-se raros e, por fim, não mais aconteciam.
Onde andaria Godofredo com seu chapéu côco e seus poemas líricos? Marieta, versada em francês, única jornalista da época, onde andaria? Emília e seus dedos mágicos que do marfim do piano, colhia o som cristalino de Clair de Lune? Figueroa e sua flauta transversal, por onde derramaria suas dores e seus chorinhos?
Por fim trancaram a sala de música com tudo que lá havia. O piano, a harpa, o violoncelo, como em uma tumba de Faraó, para que séculos mais tarde voltassem a serem vistos por olhos curiosos, que se admirariam das formas, mas nunca sentiriam que naquelas paredes ainda vibravam os sons de Liszt, Debussy, Chopin, Garoto, que em noitadas alegres encheram de emoção o casarão e a rua inteira.
Com os colegas da faculdade conheceu o amor carnal. Helga, uma polaca de lábios fortemente tingidos de carmim, que lhe atestava a habilidade na arte da felação e preferida pela estudantada, iniciou-lhe nas artes do amor. Arte? Não para Atanásio a vida não tinha arte nem amor. Dispunha de suas companhias femininas como de veículos para suas necessidades. Afinal elas estavam lá para isso. 
Muitos colegas seus, apaixonados, embriagavam-se. Porres homéricos e serenatas históricas derramaram-se pelas ladeiras, embaladas pelas paixões daqueles corações enamorados. Atanásio apenas carregava o violão.Com muito esforço sua mãe conseguiu custear-lhe os estudos até a formatura. 
Podia faltar tudo em casa, contanto que Atanásio tornasse-se Jornalista como o pai, o “Língua Ferina”, de saudosa memória para muitos e de incontestável alívio para outros.
Após peregrinar pelas salas dos políticos, antigos amigos do marido, sua mãe consegue-lhe uma colocação; Funcionário Público! E não foi difícil ser admitido no antigo jornal em que seu pai trabalhou. Lá chegou com a expectativa do renascimento das crônicas inteligentes e mordazes que seu pai fazia, reforço indispensável ao já decadente periódico. Mas Atanásio em pouco tempo, revelou-se grande decepção. Seus artigos eram superficiais, geralmente com enfoques equivocados, sem a “verve” e o traço de gênio que o “Língua Ferina” por muito tempo imprimiu, fazendo de suas comentários sociais e políticos, matéria aguardada por admiradores e inimigos.
Demitiu-se antes que  fizesse e passou a viver apenas do seu salário de funcionário público.
Com a morte da genitora, o casarão que já era por demais amplo, tornou-se monstruoso para as necessidades de Atanásio. Passou a ocupar apenas o andar térreo, onde ficava seu quarto e as dependências da antiga criada, agora muito velha, que lhe preparava as refeições e continuava a tratar-lhe como criança, pois tinha sido sua babá. 
Como os “achaques” de sua velhice o incomodassem, acabou internando-a em um Asilo Assim foi vivendo rotineiramente Atanásio,
Pontualmente às sete e meia dava uma ajeitada na gravata e recompunha a vasta cabeleira negra, legítima herança do pai, no espelho de esplêndido móvel de jacarandá entalhado, que ficava no hall da entrada. Daqueles que possuem porta chapéus e local para guarda-chuvas.Foi neste espelho que notou os primeiros cabelos brancos e rugas no rosto.- “O tempo não esquece ninguém”, resmungou para si mesmo, ao sair para a repartição 
Certa noite, logo após chegar do trabalho, sentiu aquele vazio no peito que sentira antes e que nunca conseguira entender. Impulsionado por antigas lembranças, resolveu ir ao sótão, local que tinha sido preparado por sua mãe para suas brincadeiras. Lá ficava o quarto de brinquedos, e como o salão de música, guardava suas melhores lembranças.
A instalação elétrica desgastada, não respondeu quando acionou o interruptor. Munido de velho lampião a querosene, começou a subir os degraus que o levariam ao sótão.                                                                                                                Com o tabuado da escada a estalar sob seus pés e o corrimão de madeira trabalhada rangendo ao peso de sua mão, foi dirigindo-se lentamente ao seu passado. 
A luz mortiça e amarelada da nervosa chama pouco iluminava, porém, apesar das décadas passadas, seus passos eram seguros. Afinal, refazia o caminho que fizera tantas vezes quando criança. Finalmente a porta do quarto apareceu sob a luz oscilante, e com profundo espanto sentiu o coração disparar como nunca.  Nem quando Clara o beijou pela primeira vez, ou quando Helga o fizera gozar em seu quartinho de rapariga, na “ladeira das putas”. 
Foi com a mão molhada de suor que girou a maçaneta e entrou .De pronto percebeu os dois grandes “óculos” de vitrô colorido por onde a luz da Lua penetrava, desenhando formas matizadas e irreais nas paredes.  Dali de onde quando criança via seu pai chegar ao fim da tarde, emanava uma atração irresistível.
Foi se aproximando e de longe lhe chegou à voz grave do pai, chamando pela mulher para abrir o portão.  Através dele viu a figura delgada e enérgica, com as criadas, de sua mãe dando ordens em tarefas de jardinagem. Dali podia ver o jardim cuidadosamente tratado, com bancos revestidos de conchas e pequenas estátuas de mármore espalhadas pelo gramado, que recendia o perfume de mil flores que o embriagavam., Havia muita luz, muita cor, as vozes dos criados, o vozeirão do pai, sua mãe cantando Sertaneja. Alguém dedilhava o piano. A flauta, o oboé, o violoncelo afinavam numa mistura de acordes desconexos. Logo começaria o Sarau. 
Carros paravam próximos ao portão. O antigo móvel do hall deveria estar repleto de chapéus, casacos, guarda-chuvas. As criadas “formigavam” na cozinha preparando refrescos e salgadinhos.De repente aquela “zonzeira”. O velho vazio no peito chegava a doer, e Atanásio sentou-se para não cair. No chão tateou um volume e reconheceu a caixa de seus soldados de madeira de Exército Prussiano. Apalpando os bonequinhos, trazendo-os o mais perto do rosto para vê-los melhor, explodiu em um pranto enorme, que lhe brotava com a força de um rio incontrolável. 
Após alguns dias de ausência ao trabalho, seus colegas de repartição foram até o casarão. Não obtendo reposta, comunicaram o desaparecimento a Polícia.
A autoridade, acompanhada de um chaveiro e da velha criada localizada no Asilo, entrou na casa. Nada estava faltando, nenhum sinal de arrombamento ou violência,
No sótão, sob olhares cúmplices do Delegado, a antiga criada tomou para si a caixa dos soldadinhos de madeira.
-Era o brinquedo que ele mais gostava...  Justificou-se com os olhos úmidos.

*      *    *

Ouvi esta história de uma velhinha centenária, quando de uma visita a um Asilo, e quando lhe perguntei sobre o paradeiro de Atanásio, respondeu-me com a voz desarticulada dos desdentados.-Está vivo! - E apanhando uma caixa de madeira na cômoda, mostro-me os soldadinhos.
Neste mundo de plástico e fibras sintéticas, a visão daquelas peças, foi uma viagem ao passado.
Coloridos, feitos a mão, jamais repetiam a mesma posição. Armados com fuzil e baionetas, alguns com sabre em riste, orgulhosamente envergavam o uniforme do Exército Prussiano, aquele que no capacete tinha uma ponta de lança.Enquanto extasiado observava a riqueza de detalhes esculpidos na madeira, mostrou-me com seu indicador nodoso e anquilosado um determinado soldado.
- É ele! 
 - Ele quem?
- O Atanásio, ele não morreu. Virou soldado para comandar sua tropa. Sempre me dizia que seria soldado quando crescesse.
Falava com uma ternura indefinível, única nas pessoas que muito amaram.
Sem dar crédito ao que a velhinha falava, comecei a examinar o soldadinho que ela indicou.
Realmente era diferente dos demais. Não estava fardado. Usava paletó e gravata e era de uma perfeição só vista nas estátuas dos Grandes Mestres.
Mas seria impossível tamanha perfeição em tão pequenina peça, além do que não era de madeira como os demais. Não consegui identificar o material de que era feito. 
Mas enfim, lá estava um homem de paletó e gravata, cabelos negros esvoaçantes, com a espada apontada para frente, em passo largo, como a conclamar o batalhão para a investida derradeira.
Despedi-me da velhinha prometendo voltar na semana seguinte. Promessas dessas que fazemos sem nenhuma intenção de cumprir. Mas não consegui esquecer o soldadinho, nem a expressão da velhinha quando afirmou:
- É o Atanásio, ele não morreu...
Por diversas vezes ao longo daquela semana, procurei afastar aquelas idéias do pensamento. Afinal o que esperar de uma anciã de cem anos? Cem anos é tempo suficiente para autorizarmo-nos a dizer qualquer bobagem. 
Mas aquela velhinha, apesar de encarquilhada, de voz quase incompreensível, tinha sido lúcida e coerente durante toda a narrativa.E quem mais além dela conviveu tanto tempo com o desaparecido? E seus olhos? Nunca vi tamanho brilho. Era o olhar dos possessos ou dos sábios, que já enxergam para além desse mundo. 
Bobagem. O Atanásio devia ter dado uma de Quincas Berro D’ Água e, chateado com a “a mesmice” de sua vidinha, pois o pé no mundo... 
 Não adiantava. Os argumentos e contra argumentos chocavam-se em minha cabeça, tirando-me a paz.  Afinal, eu tive em minhas mãos a miniatura de um homem, feito de não sei o que!...  Além disso, conhecendo a história de Atanásio, comecei a formular uma estranha teoria. Não poderia o Homem sob situações limites, mudar o próprio corpo? Como explicar as chagas dos devotos que sangram na Sexta Feira da Paixão? Como algumas pessoas encanecem sob pressão tal qual Jean Val  Jan, no romance de Vitor Hugo? E a existência de lugares mágicos espalhados pelo mundo, como Machu Pichu, Stone Henge, As Pirâmides, onde estudiosos afirmam que fenômenos inacreditáveis acontecem, quando devidamente buscados? Sim, agora me parecia possível. Atanásio que sempre viveu a vida “pelas bordas”, que nunca ousou com medo de perder, que nunca se envolveu com medo de sofrer, que se sentiu pequeno diante da vida, impotente ante suas limitações, não poderia num lugar mágico (e não o são os quartos de brinquedos?) plasmar em seu corpo físico os tormentos de sua alma? E que melhor local para aliviar seus sofrimentos que a frente de seus Soldadinhos Prussianos? 
Voltei na semana seguinte ao Asilo, disposto a examinar o soldadinho sob as luzes da tecnologia. Aquele meu conflito tinha que ter um fim.
A diretora do Asilo, fingindo uma tristeza de “mascara do drama”, informou-me que a velhinha morrera na noite de da minha visita.  Perguntei a quem fora entregue os pertences.
 - Estão aqui. - Deixando escapar certo alívio, por finalmente livrar-se de um entulho. - Não achamos nenhum familiar.
Era uma sacola de plástico, com poucos e pobres pertences. Nada da caixa e dos Soldadinhos.
A velha criada levara consigo o segredo de Atanásio.                                                                                                                                                                                                                      
                                                                                                                                                                                                                                                 



                                                                                                                                                                                                    Salvador, 07 de Dezembro de 1993.

                                                     Sávio Drummond