quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

GHOST


Um dos sinais de que estamos envelhecendo, é quando começamos a encontrar parentes em enterros.
Detesto enterros, e não vou a nenhum. Já basta ao meu que não poderei faltar.
Aos demais, a viúva e filhos terão que se contentar com um telegrama.
Velório da capital é horrível. No interior sim, é uma beleza. Têm carpideiras, tira-gostos, cafezinho, licor, e até cantador. É uma festa!
Ficou famoso o velório onde um dos presentes, pagodeiro famoso, juntamente com o violeiro arriscou um pagode. Como a recepção foi das melhores, resolveu fazer uma “vaquinha”, pra comprar umas cervejas e tira-gostos, só pra ajudar a passar o tempo.A viúva resolveu também contribuir, mais teve sua oferta recusada:- Não madame,  a senhora já “entrou” com o defunto.
Quando todos estavam cantando na porta da capela, pra aproveitar “a fresca” da madrugada, um engraçadinho colocou o defunto sentado, com um copo na mão, enquanto o apoiava escondido atrás de enorme coroa de flores, na cabeceira do caixão.
Quando um dos “biriteiros” entrou para pegar mais cerveja, o “escorador” do defunto exclamou, como um ventríloquo:- E eu, não vou tomar nada?
Não ficou ninguém. A correria foi geral. Pessoas de sentinelas vizinhas acudiram, e quando viram o defunto sentado com um copo na mão, também correram. Até a policia foi chamada.
Um velório desses sim, vale à pena!
Há alguns anos, uma prima foi ao velório de um conhecido.No velório ao lado, a placa com o nome do falecido. Era o meu! Nome e sobrenome idênticos. Ambos difíceis de serem encontrados.
Ao chegar em casa, com medo de ligar pra mim, ligou para minha cunhada, perguntando se eu estava bem.
Ao saber da história, resolvi ligar pra ela, com voz trêmula:- “Belzinha é seu primo que está ligando do céu, querida. Estou ligando pra agradecer sua preocupação e pra dizer que cheguei bem, e que a “galera” daqui, é “tudo gente fina”.
Só não posso demorar muito, pois São Pedro só permite um minuto por pessoa.Você não faz ideia como a fila é grande. Tá todo mundo querendo falar com o pessoal de casa”... 
Colocaram-me o apelido de Ghost.
Mas a pior experiência, vivi há uns 30 anos, quando do enterro de um parente.
No velório encontrei boa parte da “parentada”.
A velha tia, irmãos, primos e sobrinhos do morto. E ele lá, sozinho no meio da sala, metido em um jaquetão listrado, com a barba por fazer e um sorrisinho no canto da boca.
Não se ligara a ninguém, nem tivera filhos. Talvez isso explicasse sua solidão naquele momento. Nada de olhos úmidos, nem a ponta de um véu negro a roçar-lhe a barba.
Em pequenos grupos que conversavam alegremente, foi-se arrastando aquele encontro que em nada lembrava um velório, quando uma irmã do falecido, querida por todos pelo seu jeito bonachão e palavreado de botequim, aproximou-se da janela querendo refrescar-se, e assombrada com as pesadas nuvens que se juntavam rapidamente, deixou escapar:- Xiii... vai cair um toró da porra!
Um calor sufocante, pigarros, arrastar de pés e cadeiras, ufas!...  que escapavam insolentes, denunciavam a impaciência reinante.
Afinal o que estamos esperando? Pensava, quando alguém suspirou à minhas costas:- E o padre que não vem?...
E ele veio. Pesado e oleoso, com a calva brilhando de suor, acompanhado de um ajudante, abotoado até o pescoço, que repetia sua reza com a imponência de um arauto.
Com um olho na chuva que ameaçava cair a qualquer momento e outro no missal, o padre lustroso rapidamente encerrou a cerimônia:- Podem fechar o caixon. Sentenciou com forte sotaque galego.
Dezenas de mãos solidárias precipitaram-se sobre a tampa do ataúde e rapidamente o finado sumiu dentro da urna. Sob um céu baixo e escuro seguiu a comitiva.
O padre gordo na frente apressou a reza e o passo. Atrás o caixão instalado em um carrinho, empurrado e puxado pela parentada aflita com o temporal, trepidava sobre o tampo metálico.
As velhas senhoras, metidas em saltos altos, não conseguiam acompanhar a correria e foram ficando para trás, num festival de pisadas em falso, tornozelos torcidos e corpos oscilantes.O padre apressado já obtinha larga dianteira e começava a sumir no forte declive em que se tornara o caminho, quando ela chegou. Redonda e cheia a primeira gota, ressoou na tampa do caixão como uma bola de gude.
Quando o cortejo chegou ao alto da ladeira, o temporal desabou de vez. A debandada foi geral. Debaixo de uma chuva pesada e grossa, todos corriam procurando abrigo.
Valia tudo para se proteger. Desde o pequeno beiral do ossuário próximo, à arcada do jazigo de imponente família. 
A mulher do deputado passou por mim, rápida como uma gazela, com os sapatos nas mãos, e a pesada maquiagem escorrendo pelo rosto, em uma lama colorida. 
A velha professora de francês rodopiava debaixo da tormenta como um brinquedo de corda, sem saber por onde fugir.
A visibilidade era péssima. Por trás da cortina de água, ouviam-se mulheres chamando pelos maridos, filhos pelas mães e sonoros palavrões após escorregões. 
Raios riscavam os espaços, iluminando tudo, seguidos por trovões pavorosos. Parecia que o mundo ia se acabar. No alto da ladeira o carrinho com o caixão permanecia escorado por um pequeno calço.
O movimento do veículo, inicialmente imperceptível, rapidamente transformou-se em desabalada correria ladeira abaixo. No final da ladeira o caminho virava abruptamente à direita, mas não o caminho retilíneo que o caixão tomou após o carrinho “topar” com o meio-fio.Sob o temporal, o caixão foi catapultado enquanto raios, certamente atraídos pelas cantoneiras e enorme crucifixo de metal, pulverizaram-no em pleno ar.Foi o desenlace mais esquisito que vi para um enterro. O defunto sumiu!
A partir deste dia nunca mais fui a um enterro, e quando “chegar minha hora” quero ser cremado.

 Salvador , 12 de Dezembro de 2011
Sávio Drummond.

Um comentário:

  1. Seu texto é tão vívido que parecia que eu estava nos velórios! Amei! Um jeito muito leve de falar de uma coisa tão indesejada.
    Eu costumo dizer que, a certa altura da vida, o número de enterros a que temos que comparecer supera o de aniversários e casamentos...
    Eu ainda me sinto na obrigação de ir aos enterros todos, dado que desde a mais tenra idade fui designada a acompanhante oficial de meu pai aos tais eventos, pois minha mãe se recusava terminantemente...
    E nunca vou me esquecer do velório de uma amiga, aos 10 anos, pois o cabelo da mãe dela pegou fogo! Um corre-corre danado também!

    Mas espero um post sobre um assunto mais feliz para inaugurar o novo ano!

    Um beijo e um feliz 2013!

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