Um
dos sinais de que estamos envelhecendo, é
quando começamos a encontrar parentes em
enterros.
Detesto
enterros, e não vou a nenhum. Já basta ao meu que não poderei faltar.
Aos
demais, a viúva e filhos terão que se contentar com um telegrama.
Velório
da capital é horrível. No interior sim, é uma beleza. Têm carpideiras,
tira-gostos, cafezinho, licor, e até cantador. É uma festa!
Ficou
famoso o velório onde um dos presentes, pagodeiro famoso, juntamente com o
violeiro arriscou um pagode. Como a recepção foi das melhores, resolveu fazer uma “vaquinha”, pra
comprar umas cervejas e tira-gostos, só pra ajudar a passar o tempo.A viúva resolveu também contribuir, mais teve sua oferta recusada:-
Não madame, a senhora já “entrou” com o
defunto.
Quando
todos estavam cantando na porta da capela, pra aproveitar “a fresca” da
madrugada, um engraçadinho colocou o defunto sentado, com um copo na mão,
enquanto o apoiava escondido atrás de enorme coroa de flores, na cabeceira do
caixão.
Quando
um dos “biriteiros” entrou para pegar mais cerveja, o “escorador” do defunto
exclamou, como um ventríloquo:- E eu,
não vou tomar nada?
Não ficou ninguém. A correria foi geral. Pessoas de sentinelas vizinhas
acudiram, e quando viram o defunto sentado com um copo na mão, também correram.
Até a policia foi chamada.
Um velório desses sim, vale à pena!
Há
alguns anos, uma prima foi ao velório de um conhecido.No velório ao lado, a placa com o nome do falecido. Era o meu! Nome e
sobrenome idênticos. Ambos difíceis de serem encontrados.
Ao chegar em casa, com medo de ligar pra mim, ligou para minha cunhada,
perguntando se eu estava bem.
Ao saber
da história, resolvi ligar pra ela, com voz trêmula:- “Belzinha
é seu primo que está ligando do céu, querida. Estou ligando pra agradecer sua
preocupação e pra dizer que cheguei bem, e que a “galera” daqui, é “tudo gente
fina”.
Só não posso
demorar muito, pois São Pedro só permite um minuto por pessoa.Você
não faz ideia como a fila é grande. Tá todo mundo querendo falar com o pessoal
de casa”...
Colocaram-me
o apelido de Ghost.
Mas a pior experiência, vivi há uns 30
anos, quando do enterro de um parente.
No
velório encontrei boa parte da “parentada”.
A
velha tia, irmãos, primos e sobrinhos do morto. E ele lá, sozinho no meio da
sala, metido em um jaquetão listrado, com a barba por fazer e um sorrisinho no
canto da boca.
Não se ligara a ninguém, nem tivera filhos. Talvez isso explicasse sua
solidão naquele momento. Nada de olhos úmidos, nem a ponta de um véu negro a
roçar-lhe a barba.
Em pequenos
grupos que conversavam alegremente, foi-se arrastando aquele encontro que em
nada lembrava um velório, quando uma irmã do falecido, querida por todos pelo
seu jeito bonachão e palavreado de botequim, aproximou-se da janela querendo
refrescar-se, e assombrada com as pesadas nuvens que se juntavam rapidamente,
deixou escapar:- Xiii... vai cair um toró da porra!
Um
calor sufocante, pigarros, arrastar de pés e cadeiras, ufas!... que escapavam insolentes, denunciavam a
impaciência reinante.
Afinal
o que estamos esperando? Pensava, quando alguém suspirou à minhas costas:-
E o padre que não vem?...
E ele veio. Pesado e
oleoso, com a calva brilhando de suor, acompanhado de um ajudante, abotoado até
o pescoço, que repetia sua reza com a imponência de um arauto.
Com um olho na chuva que
ameaçava cair a qualquer momento e outro no missal, o padre lustroso
rapidamente encerrou a cerimônia:-
Podem fechar o caixon. Sentenciou com forte sotaque galego.
Dezenas
de mãos solidárias precipitaram-se sobre a tampa do ataúde e rapidamente o
finado sumiu dentro da urna. Sob um céu baixo e escuro seguiu a comitiva.
O
padre gordo na frente apressou a reza e o passo. Atrás o caixão instalado em um
carrinho, empurrado e puxado pela parentada aflita com o temporal, trepidava
sobre o tampo metálico.
As velhas senhoras, metidas em saltos
altos, não conseguiam acompanhar a correria e foram ficando para trás, num
festival de pisadas em falso, tornozelos torcidos e corpos oscilantes.O padre apressado já
obtinha larga dianteira e começava a sumir no forte declive em que se tornara o
caminho, quando ela chegou. Redonda e cheia a primeira gota, ressoou na tampa do caixão como uma
bola de gude.
Quando o cortejo
chegou ao alto da ladeira, o temporal desabou de vez. A debandada foi geral. Debaixo de uma chuva pesada e grossa, todos
corriam procurando abrigo.
Valia
tudo para se proteger. Desde o pequeno beiral do ossuário próximo, à arcada do jazigo
de imponente família.
A
mulher do deputado passou por mim, rápida como uma gazela, com os sapatos nas
mãos, e a pesada maquiagem escorrendo pelo rosto, em uma lama colorida.
A
velha professora de francês rodopiava debaixo da tormenta como um brinquedo de
corda, sem saber por onde fugir.
A visibilidade era péssima. Por trás da cortina de água, ouviam-se
mulheres chamando pelos maridos, filhos pelas mães e sonoros palavrões após
escorregões.
Raios
riscavam os espaços, iluminando tudo, seguidos por trovões pavorosos. Parecia
que o mundo ia se acabar. No
alto da ladeira o carrinho com o caixão permanecia escorado por um pequeno
calço.
O movimento do veículo, inicialmente
imperceptível, rapidamente transformou-se em desabalada correria ladeira
abaixo. No final da ladeira o caminho virava abruptamente à direita, mas não o
caminho retilíneo que o caixão tomou após o carrinho “topar” com o meio-fio.Sob o temporal, o caixão foi catapultado enquanto raios, certamente
atraídos pelas cantoneiras e enorme crucifixo de metal, pulverizaram-no em
pleno ar.Foi o desenlace mais esquisito que vi para um enterro. O defunto sumiu!
A partir deste dia
nunca mais fui a um enterro, e quando “chegar minha hora” quero ser cremado.
Salvador , 12 de Dezembro de 2011
Sávio Drummond.
Sávio Drummond.