terça-feira, 30 de agosto de 2011

RELICÁRIO

Tenho uma caixa, cheia de lembranças. Fotos antigas, passagens de ônibus, ingressos de futebol, tickets de teatro e cinema. Principalmente as fotos me fazem “viajar”.
Fotos são imagens roubadas ao tempo e presas à película, como diz um poeta, amigo meu.

A mais antiga, mostra apenas meu rosto em várias posições, quando tinha mais ou menos 1 ano. Em outra, segurando um gatinho e em uma outra apareço fantasiado de Papai Noel com meu irmão de oficial da Marinha, com um lança-perfume na mão, em um carnaval no Baiano de Tênis. Uma foto de minha primeira namorada. Moreninha, com longos cabelos pretos cacheados, quando tinha 14 anos, e fizemos uma Embaixada ao Liceu Salesiano Santa Rosa em Niterói.
Uma foto de Dom Bosco (meu irmão se chama Bosco), com duas marcas à mesma altura. Foram causadas, por pequenas esferas de cobre disparadas por uma Winchester 44 a ar comprimido. Tentando acertar uma caixa de fósforos errei, e por duas vezes acertei o quadro de Dom Bosco, ao fundo. A distância entre as marcas é exatamente a largura de uma caixa de fósforos. Um botão com o emblema do Flamengo, me fez lembrar o jogo de futebol de mesa com meu irmão que torcia pelo Vasco da Gama e tinha um time de botões do Vasco. A rivalidade tinha que ser mantida. O goleiro era uma caixa de fósforos. E se um botão após chocar-se com outro, corresse a distância de uma caixa de fósforos, era falta. Uma caixa de fósforos também era a distância da barreira. Uma ficha redonda de plástico amarelo, que era uma passagem de ônibus.
Cada cor correspondia a determinado percurso. Cada relíquia tem uma história. Não é a toa que o dicionário, define relicário como caixa ou bolsa que contém relíquias. Lugar próprio para guardar lembranças. Quanto mais envelhecemos, mais lembranças temos. O velho não faz planos. Tem apenas lembranças. Um pedaço de papel azul mostra a entrada do Cine-Teatro Nazaré, de propriedade do Liceu Salesiano. Uma medalha dourada, como prêmio de melhor aluno da sala, do ano de 1960, premiação feita no Cine Nazaré para orgulho de meus pais. Uma foto em preto e branco fixou o momento, em que usei paletó pela primeira vez.
Uma foto de meu irmão competindo na piscina da Vila Olímpica da Fonte Nova. Eu e meu irmão todo tarde íamos nadar na piscina da Fonte Nova. Certo dia o treinador Tavinho (será que ainda é vivo?) encantou-se com o “deslize” e rapidez de meu irmão e levou-o para treinar pelo Bahia. Bosco chegou a ficar em 3º lugar no Campeonato Norte e Nordeste. Nadava muito mais que o pernambucano vencedor, mais perdia sempre nas viradas, pois em São Tomé de Paripe, aonde aprendemos a nadar, não havia piscina, e o tempo para treinar foi muito pequeno. Nosso pai foi nosso verdadeiro treinador.
Um ingresso da antiga Fonte Nova, do jogo em que Nildo “Birro Doido” salvou o que seria o 1000º gol de Pelé. O jogo acabou 1 x 1. Outro ingresso da Fonte Nova, na inauguração do anel superior. Bahia 1X0 Flamengo, gol de Zé Eduardo, meu colega do Salesiano, aonde era aluno Interno, pois era de Ipirá.
Uma foto em que uso o uniforme de gala do Salesiano, empunhando a bandeira do Pará, em um desfile de 7 de Setembro.
Outra foto mostra meu pai sacando em uma partida de frescobol, e mais outra aonde eu, meu amigo e vizinho Jorge, e meu primo Marcelo em um veraneio em São Tomé. Tínhamos a mesma idade (15 anos) e “só pernas”, sugerindo que cresceríamos muito.
Uma nota de venda que o garçom da Cubana, sorveteria que ficava no alto do Elevador Lacerda. Eu e Chico íamos tomar Côco Espumante com bolinhos. De tanta confiança que o garçom tinha em nós, esqueceu de tomar. Um pauzinho usado no restaurante chinês Tong Fong, no Campo da Pólvora. Nunca consegui usar os pauzinhos. A sopa especial e o porco doce-azedo, deixaram um gosto doce na boca até hoje.
Uma pagina de Jornal, muito amarelada, traz os aprovados no vestibular de Medicina da UFBa. Minha mãe sublinhou meu nome e os de Tiburtino, Otoni e Chico que estudavam lá em casa. Fotos coloridas mostram-me no tombadilho do navio japonês Ary Parreira, tomado ao Japão pelos americanos na 2º guerra, e que nos levou até Manaus. Estava com 21 anos e no 3º ano da faculdade, quando participei da operação Mauá. O encontro das Águas (Amazonas e Negro), a pororoca e principalmente a cidade de Óbidos, quando o maior e mais volumoso rio do mundo, passa em uma garganta. Dois faróis, um em cada alto do rochedo, assinalam a passagem. Os“causos” ocorridos comigo no exercício da profissão dariam um livro. Um Cotonete lembrou-me de um “negão”, soldado da P. M. campeão baiano de Maratona, que apareceu com verrugas no ânus e proximidades. Tratava-se de Condiloma Acuminado, doença viral sexualmente transmissível. Expliquei do que se tratava, e que era necessário usar determinada substância caustica para “queimar” as lesões, colocando vaselina em torno delas, para proteger a pele sadia, e aplicar a substância com um Cotonete. O rapaz insistia em dizer que não era homossexual, e que não poderia ser doença venérea, mas na saída falou baixinho, todavia o suficiente para ouvir: -“O Reginaldo vai ter que se explicar”.

Costumo dizer que o velho não faz planos, e só tem lembranças. Uma poesia que fiz aos 15 anos, e que encontrei na caixa, diz o que penso.

 LEMBRANÇAS

 Cheiro de lavanda, cabelos molhados.
 Uma foto antiga, restos do passado.
 Tanta coisa pra fazer, tanta coisa, tanta coisa...
 Uma pressa enorme, um beijo não dado.
 Um medo tão grande, vindo do passado. Tanta coisa, por fazer, tanta coisa, tanta coisa...

 Hoje em dia estes versos fazem muito mais sentido, que aos 15 anos.



Salvador, 10 de junho de 2011. Sávio Drummond.

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