quarta-feira, 31 de agosto de 2011

NEVROLINGUÍSTICA


Os idiomas deveriam falar o sentimento fielmente,
como um grito de dor o sofrimento pungente. 
Os apaixonados falariam em Francês, sussurro a caminho do beijo,
Em trêmulos lábios, denunciando o desejo.
As discussões e a ira em Inglês curto e contuso,
que pra música também se presta, como o português em uso.
A poesia em Espanhol, canção se torna modulada ao gosto do freguês, 
e os xingamentos cortantes e rudes reverberariam em Japonês.
Discursos, músicas sacras em Latim,
aos ecos e sombras de um monástico jardim.
E todas as ciências em Grego erudito,
guardariam segredos do infinito.
A ópera só em Italiano seria, pois outro idioma impostor soaria.
Os gagos gaguejariam em Alemão,
para aumentar o tormento do repetitivo cidadão.                                                                                                                                                                           
As grafias com a elegância do Sânscrito 
escrito também poderiam ser em Chinês, 
pensamento a pinceladas restrito.  
Mas para o amor só o silêncio que eterniza o momento,
pois não há língua de homem que fale tal sentimento.  

Salvador, Agosto de 2011

Sávio Drummond

SEMIOLOGIA DO AMOR

Tenho tonturas.
Talvez sejam da idade.
A cabeça nas alturas, sem a identidade 
Do caminho em que vago. 
Vira - lata da vida, que não me fez afago.

Tenho tremores.
De uma febre esquisita, 
Que queima, mas não esturrica.
Prolongando o sofrimento,  
De penitente em juramento.

Tenho suores
Gelados, quentes, alternados,
Da alma nascentes, enviados.
Que me encharcam a pele crestada,
E se misturam as lágrimas derramadas.

Tenho medos.
Vejo sombras atrás da porta. 
De amores proibidos, numa vida quase morta. 
Ferida a caco de vidro, que sangra desatada, 
Mas teima em respirar, qual chama açoitada.

Tenho dores
No peito, na alma, que me ofendem.
Semiologia de amor? 
Mas também pode ser dengue.

*SEMIOLOGIA - Sinais e sintomas, que caracterizam o quadro clínico das doenças.

Agosto de 2011
Sávio Drummond

SOLIDADE

Baile do fim do ano letivo de 1965. A banda do colégio tocava os sucessos da época, vestidos e penteados como os Beatles, que influenciaram a todos, “ditando” moda e conceitos.   Os 4 rapazes de Liverpool gravaram vários LPs, com sucesso de todas as faixas.  A banda, sofrivelmente, tocava os sucessos de Roberto e Erasmo Carlos, Leno e Lílian, Trio Ternura e a Turma da Jovem Guarda.
O jovem de 16 anos estava apaixonado pela colega da sala vizinha, e aprendera a identificar sua voz entre dezenas de outras que cantavam Alegria-Alegria, Ponteio ou Travessia, quando dos intervalos das aulas. Em silêncio, remoía seu amor desesperado.
Quando do descanso do conjunto, colocaram na radiola And I love her, a música que mais gostava.
Enxugando o suor das mãos tirou-a para dançar. Era agora ou nunca! Sob a voz de John Lennon, que parecia cantar só pra eles, dançaram em um salão vazio.
Soube que era da cidade de Solidade, e que seu pai, pequeno agricultor, com grande sacrifício a colocara para estudar o Científico no melhor Colégio Público da capital, e que morava em uma pensão só para moças, na rua atrás do colégio. Que sua responsabilidade era muito grande, pois seu pai, no fundo queria que ela fosse tudo aquilo que não havia conseguido ser.
Por diversas vezes seus dedos perderam-se em seus negros cabelos, que chegavam até a cintura. Intimidades que aceitas, mostravam que era correspondido.O perfume que sentia era dos seus cabelos, ou estava no ar? Cantava baixinho ou dizia que o amava? Sentia seu coração bater em seu peito ou era o seu próprio que, tonto como ele, erra de lugar?
De manhãzinha levou-a até a pensão, e as ultimas estrelas, que “teimavam em não ir dormir”, testemunharam seus beijos e a promessa que voltariam a namorar na volta às aulas, no ano seguinte.
Três meses sem se verem. Engana-se quem julga poder viver um grande amor impunemente.
Ao chegar a casa lembrou-se que não perguntara seu nome.   Após o almoço “correu” ao pensionato.
Os empregados informam que todas tinham voltado as suas cidades. Lembravam-se de uma ou outra pensionista, mas da moça morena de Solidade...nada.
No início das aulas a moça não retornou. Soube que com a morte do pai, tivera que permanecer em Solidade e trabalhar, ajudando a mãe. 
Não se casou, nem tivera filhos. Após aposentar-se a inatividade o massacrou. “Mil doenças” apareceram e seu médico aconselhou-o a espairecer. Por que não viajar?   Resolveu ir até Solidade, encontrar seu amor do passado.
A seca daquele ano tinha sido a mais braba dos últimos anos. Na região muitos tinham trancado as casas e ido embora após a morte das criações. O chão rachado soltava uma poeira fina que tingia a tudo de vermelho.
Uma moça muito parecida com sua paixão o atendeu, e depois de ouvir a história disse-lhe, com lágrimas nos olhos, que ela morrera há poucos anos. Contou-lhe que sua mãe, só após tornar-se viúva, tivera coragem de contar-lhe sobre o grande amor que tivera quando tinha 16 anos, e que só namoraram por um dia.
Mostrou-lhe um velho retrato. Amarelada e quase apagada a foto mostrava como era há 40 anos. Atrás tinha escrito: Meu grande e único amor. - “O Senhor poderia ter sido meu pai e este pestinha seu neto”.  Um garotinho moreno e suado foi chamado para conhecer um amigo da vovó.

No retorno, o ônibus parecia que não chegaria nunca, embora o asfalto “voasse” sob seus pés.   De agora em diante o resto de sua vida, seria só de lembranças. Lembranças sem nome, pois mais uma vez esquecera-se de perguntar o nome dela.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    Salvador, 06 de Junho de 2011    
Sávio Drummond
                                                                                                                                                                     

terça-feira, 30 de agosto de 2011

RELICÁRIO

Tenho uma caixa, cheia de lembranças. Fotos antigas, passagens de ônibus, ingressos de futebol, tickets de teatro e cinema. Principalmente as fotos me fazem “viajar”.
Fotos são imagens roubadas ao tempo e presas à película, como diz um poeta, amigo meu.

A mais antiga, mostra apenas meu rosto em várias posições, quando tinha mais ou menos 1 ano. Em outra, segurando um gatinho e em uma outra apareço fantasiado de Papai Noel com meu irmão de oficial da Marinha, com um lança-perfume na mão, em um carnaval no Baiano de Tênis. Uma foto de minha primeira namorada. Moreninha, com longos cabelos pretos cacheados, quando tinha 14 anos, e fizemos uma Embaixada ao Liceu Salesiano Santa Rosa em Niterói.
Uma foto de Dom Bosco (meu irmão se chama Bosco), com duas marcas à mesma altura. Foram causadas, por pequenas esferas de cobre disparadas por uma Winchester 44 a ar comprimido. Tentando acertar uma caixa de fósforos errei, e por duas vezes acertei o quadro de Dom Bosco, ao fundo. A distância entre as marcas é exatamente a largura de uma caixa de fósforos. Um botão com o emblema do Flamengo, me fez lembrar o jogo de futebol de mesa com meu irmão que torcia pelo Vasco da Gama e tinha um time de botões do Vasco. A rivalidade tinha que ser mantida. O goleiro era uma caixa de fósforos. E se um botão após chocar-se com outro, corresse a distância de uma caixa de fósforos, era falta. Uma caixa de fósforos também era a distância da barreira. Uma ficha redonda de plástico amarelo, que era uma passagem de ônibus.
Cada cor correspondia a determinado percurso. Cada relíquia tem uma história. Não é a toa que o dicionário, define relicário como caixa ou bolsa que contém relíquias. Lugar próprio para guardar lembranças. Quanto mais envelhecemos, mais lembranças temos. O velho não faz planos. Tem apenas lembranças. Um pedaço de papel azul mostra a entrada do Cine-Teatro Nazaré, de propriedade do Liceu Salesiano. Uma medalha dourada, como prêmio de melhor aluno da sala, do ano de 1960, premiação feita no Cine Nazaré para orgulho de meus pais. Uma foto em preto e branco fixou o momento, em que usei paletó pela primeira vez.
Uma foto de meu irmão competindo na piscina da Vila Olímpica da Fonte Nova. Eu e meu irmão todo tarde íamos nadar na piscina da Fonte Nova. Certo dia o treinador Tavinho (será que ainda é vivo?) encantou-se com o “deslize” e rapidez de meu irmão e levou-o para treinar pelo Bahia. Bosco chegou a ficar em 3º lugar no Campeonato Norte e Nordeste. Nadava muito mais que o pernambucano vencedor, mais perdia sempre nas viradas, pois em São Tomé de Paripe, aonde aprendemos a nadar, não havia piscina, e o tempo para treinar foi muito pequeno. Nosso pai foi nosso verdadeiro treinador.
Um ingresso da antiga Fonte Nova, do jogo em que Nildo “Birro Doido” salvou o que seria o 1000º gol de Pelé. O jogo acabou 1 x 1. Outro ingresso da Fonte Nova, na inauguração do anel superior. Bahia 1X0 Flamengo, gol de Zé Eduardo, meu colega do Salesiano, aonde era aluno Interno, pois era de Ipirá.
Uma foto em que uso o uniforme de gala do Salesiano, empunhando a bandeira do Pará, em um desfile de 7 de Setembro.
Outra foto mostra meu pai sacando em uma partida de frescobol, e mais outra aonde eu, meu amigo e vizinho Jorge, e meu primo Marcelo em um veraneio em São Tomé. Tínhamos a mesma idade (15 anos) e “só pernas”, sugerindo que cresceríamos muito.
Uma nota de venda que o garçom da Cubana, sorveteria que ficava no alto do Elevador Lacerda. Eu e Chico íamos tomar Côco Espumante com bolinhos. De tanta confiança que o garçom tinha em nós, esqueceu de tomar. Um pauzinho usado no restaurante chinês Tong Fong, no Campo da Pólvora. Nunca consegui usar os pauzinhos. A sopa especial e o porco doce-azedo, deixaram um gosto doce na boca até hoje.
Uma pagina de Jornal, muito amarelada, traz os aprovados no vestibular de Medicina da UFBa. Minha mãe sublinhou meu nome e os de Tiburtino, Otoni e Chico que estudavam lá em casa. Fotos coloridas mostram-me no tombadilho do navio japonês Ary Parreira, tomado ao Japão pelos americanos na 2º guerra, e que nos levou até Manaus. Estava com 21 anos e no 3º ano da faculdade, quando participei da operação Mauá. O encontro das Águas (Amazonas e Negro), a pororoca e principalmente a cidade de Óbidos, quando o maior e mais volumoso rio do mundo, passa em uma garganta. Dois faróis, um em cada alto do rochedo, assinalam a passagem. Os“causos” ocorridos comigo no exercício da profissão dariam um livro. Um Cotonete lembrou-me de um “negão”, soldado da P. M. campeão baiano de Maratona, que apareceu com verrugas no ânus e proximidades. Tratava-se de Condiloma Acuminado, doença viral sexualmente transmissível. Expliquei do que se tratava, e que era necessário usar determinada substância caustica para “queimar” as lesões, colocando vaselina em torno delas, para proteger a pele sadia, e aplicar a substância com um Cotonete. O rapaz insistia em dizer que não era homossexual, e que não poderia ser doença venérea, mas na saída falou baixinho, todavia o suficiente para ouvir: -“O Reginaldo vai ter que se explicar”.

Costumo dizer que o velho não faz planos, e só tem lembranças. Uma poesia que fiz aos 15 anos, e que encontrei na caixa, diz o que penso.

 LEMBRANÇAS

 Cheiro de lavanda, cabelos molhados.
 Uma foto antiga, restos do passado.
 Tanta coisa pra fazer, tanta coisa, tanta coisa...
 Uma pressa enorme, um beijo não dado.
 Um medo tão grande, vindo do passado. Tanta coisa, por fazer, tanta coisa, tanta coisa...

 Hoje em dia estes versos fazem muito mais sentido, que aos 15 anos.



Salvador, 10 de junho de 2011. Sávio Drummond.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

ENCÔSTO

Tem gente que não acredita como eu não acreditava, mas diante do ocorrido, passei a dar crédito. Refiro-me ao Candomblé e seus Orixás. Trabalhava em um Posto Médico do I.A.P.S.E.B. (Instituto de Assistência e Previdência do Estado da Bahia) no Centro Administrativo. Quando me preparava para ir pra casa, senti discreta cólica intestinal. Já no carro, à caminho de casa a cólica aumentou. Ruídos estranhos percorriam minha barriga, que juntamente com as cólicas obrigavam-me a “me espremer todo, e não passava nem pensamento”. “Só os retardados mentais não conseguem se segurar” pensava, tentando me convencer. Tóóóiiim, dessa vez a cólica foi danada, e agora suava “em bicas”, enquanto acelerava. Nem Roberto Carlos, na Estrada de Santos, corria como eu. Na saída do Centro Administrativo, passei por um Despacho de Candomblé. Quase dou um “cavalo de pau”, tamanha freada. A solução veio como um relâmpago. Talvez Iansã , orixá dos raios, Santa Bárbara no sincretismo, me inspirou. Êparrei oiá! Uma galinha morta, uma tigela de barro (aguidá), cheia de água da chuva, com azeite sobrenadante, e velas de várias cores. Peguei a tigela, joguei seu conteúdo fora e me afastei, pois a galinha fedia pra caramba. Adiante, subi no passeio e com belo bambuzal ao fundo “me aliviei”. Enquanto os carros passavam, eu em um nível mais alto enchia a tigela. O alívio foi imediato. Pela porta do carona “devolvi” a tigela transbordante. Diante de tão grande necessidade o Santo deveria ser mais compreensivo. Qual o quê! Ante tão grande desrespeito, o Santo no outro dia, mandou para trabalhar comigo o mais “perturbado” empregado da Petrobras (outro emprego que tinha). Logo o apelidei de Encosto. Hoje, o filho que não tive.





Sávio Drummond.
Salvador, 17 de Agosto de 2011.