quarta-feira, 25 de setembro de 2013

TRISTE VELHO CHICO

O 1º livro que li, aos 10 anos, chamava-se Cazuza e falava sobre os Gaiolas, embarcações que trafegavam no Rio São Francisco, fazendo a ligação entre Pirapora (MG) a Penedo (AL). 
Essas embarcações traziam na proa (frente) carrancas de seres diabólicos, superstição da população ribeirinha, usada para afastar os maus espíritos.Os viajantes armavam redes no convés para dormirem, pois a viagem durava vários dias.
Às margens do Rio São Francisco, em alto sertão baiano, fica uma das maiores grutas do Brasil, a gruta de Bom Jesus da Lapa, onde em seu interior foi construída uma Catedral. Nela, romeiros realizam a 2ª maior romaria do país (1 a 6 de Agosto), só perdendo para a de Aparecida do Norte (13 a 15 de Agosto), padroeira do país. 
O Rio São Francisco foi descoberto pelo navegador florentino , Américo Vespúcio, em 4 de Outubro de 1501, e batizado com este nome pois era dia da celebração de São Francisco.O rio era chamado de Opará pelos índios da região, que quer dizer Rio Mar. Sua nascente encontra-se a 1.200 metros de altitude na Serra da Canastra, no sul de Minas Gerais e percorre 2.863 Km antes de desaguar no Oceano Atlântico. Possui dois trechos navegáveis. O médio de 1.371 Km, entre Pirapora (MG) a Juazeiro (BA)- Petrolina (PE), e o baixo com208 Km, entre Piranhas (AL)e o Oceano Atlântico. O último município  que atravessa é  Piraçabuçu (AL), onde fica em sua foz, depois de atravessar cinco estados. 
Em 1552, o 1º Donatário da Capitania de Pernambuco Duarte Coelho Pereira, fundou a cidade de Penedo, no atual estado de Alagoas e lá, em 1637, foi construído um Forte devido aos interesses dos franceses, que por lá andavam  desde 1526, dando origem a uma pequena baía em sua foz, chamada de Porto dos Franceses.
Nas proximidades dessa baía  que se deu o naufrágio da nau que levava o 1º Bispo do Brasil, Dom Pero Fernandes Sardinha, de volta a Portugal.  Ao chegar em terra, o Bispo foi morto e devorado pelos índios Caetés.
Havia nas costas brasileiras duas grandes nações indígenas, os Tupís e Gês que chamavam a qualquer grupo que não falava sua língua, de Tapuias.
O nome de Rio da Integração Nacional se deve as Entradas e Bandeiras, que durante os Séculos XVII e XVIII usaram-no como via navegável para expedições.
Por mais de 200 anos, os Bandeirantes causaram grande genocídio das populações indígenas do interior do estado. Muitos marginais  e negros fugidos escondiam-se nas aldeias indígenas de suas margens.
Em 20 de Dezembro de 1695, uma tropa de mercenários, contratada pela Coroa Portuguesa e usineiros da Capitania de Pernambuco, destruiu o último foco de resistência negra, e matou os quilombolas, ligados ao Quilombo de Palmares, que tinha sido destruído pelo bandeirante Domingos Jorge Velho em 6 de Fevereiro de 1649, e ferido seu líder Zumbí, que, então conseguira escapar.
O “velho Chico”, antigo rio da Integração Nacional, não é navegável inteiramente há muitos anos, pois vem sofrendo um processo de assoreamento que acabará por “matá-lo”, principalmente se for “levado a cabo” a transposição do velho Chico, que vem sendo defendida por políticos nordestinos, como solução para acabar com a seca do nordeste. Até D. Pedro II prometeu vender as jóias da coroa e solucionar esse problema.Não vendeu, e o nordeste continua tão seco quanto antes.
Da promessa, sobrou a Ponte D. Pedro II, sobre o Rio Paraguaçu, que liga Cachoeira a São Felix, e que está para desabar, por falta de manutenção.
O que se deve fazer é drenar a “calha” do rio nos pontos necessários, tornando-o novamente navegável, sendo uma importante via de locomoção para a população ribeirinha, trazendo de volta os gaiolas, as carrancas e o turismo da região.
Quanto à seca do Nordeste, a solução é furar poços artesianos, pois, se não me engano, o maior lençol de água potável do Brasil, chama-se Aquífero Guarani, que se encontra a 600 metros de profundidade, abrangendo o norte da Bahia, sul do Ceará e 1/3 oeste de todos os estados nordestinos.

Salvador, 28 de Novembro de 2012
Sávio Drummond.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

PROMESSA É DÍVIDA

Tive um conhecido, belga de nascimento, baiano de coração, que não sei por que cargas d’água, deu com os costados em Salvador, e apaixonou-se por uma autêntica crioula baiana e, com ela se casou.
Conheceu-a quando certo dia pediu um acarajé. Mãe Conceição perguntou se queria com ou sem pimenta. Querendo ser engraçadinho, respondeu:
- Bote como se fosse no seu acarajé...
Se “lenhou”, mãe Conceição adorava pimenta, e o Gringo comeu o acarajé mais ardido de sua vida.
Mãe Conceição, sua esposa, tinha seu tabuleiro no largo do Rio Vermelho, e seu Terreiro no Curuzú.
O Gringo era seu ajudante na vendagem, mas no terreiro só foi uma vez.
Mãe Conceição o pegou transando com uma Filha de Santo. 
Expulsou a danada debaixo de “porrada”, e ameaçou cortar “os documentos” do gringo, enquanto dormisse se ele voltasse a “por os pés” no Terreiro.
Certa feita o Gringo chegou a um bar acompanhado de duas garotas de programa:
- Uma Coca-Cola!
O “barman” ao ver três adultos, perguntou:
- Família?
O gringo, que ainda se enrolava com a língua:
- Non, tudo puta! Tudo puta!

Um vizinho do Gringo instalou um ar condicionado, e o gringo não conseguia dormir, devido ao barulho que fazia. Na 1º reunião de condomínio, expôs suas queixas, e descobriu que muitos outros também estavam sendo incomodados.
O ar condicionado foi tirado, ou trocado, e o barulho acabou. Logo, queixa-se o Gringo a um dos incomodados:
-Agora não consigo dormir, pois já tinha me acostumado com o barulho. Estou sentindo falta do barulho!

O Gringo estava perfeitamente integrado ao modo de ser, crenças e culinária baianas. No largo da Mariquita, no Rio Vermelho onde morava, rara era a noite que não parava no restaurante e padaria do Pepe para comer caruru, sarapatel, moqueca de peixe, sempre acompanhadas por várias garrafas de cerveja. O gringo bebia pra caramba!
Certa feita o Gringo estava sem dinheiro e prometeu ao Senhor do Bonfim, Santo de maior devoção de Salvador, que daria cinco voltas de joelhos em torno da colina sagrada se ganhasse algum. Inspirado nas cunhadas, segundo ele, jogou na cobra, e ganhou pequena fortuna.
Ao chegar ao sopé da colina viu que a tarefa não era fácil. O que fazer? Agora estava em débito com o Santo. Dever ao Santo é pior que dever ao mais miserável dos agiotas.Da mesma forma que ele deu, ele tira.
Resolveu o problema: Chamou um Táxi, ajoelhou-se no banco de trás e mandou o motorista dar as cinco voltas prometidas, enquanto rezava contritamente, agradecendo.  Enganou o Santo e cumpriu a promessa.
Promessa é dívida!                     



                                                                                                                    Salvador, 26 de Dezembro de 2011.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O SUICIDA


Conheci o João no tempo do Colégio Secundário. Após o vestibular perdemos contato e tornou-se um daqueles personagens que por encontrarmos ocasionalmente, passam a ser testemunha viva da inexorabilidade do tempo.

Encontrá-lo era como olhar-me num espelho fantástico, dos que não distorcem a imagem segundo nossas vaidades ou desejos. João simplesmente envelhecia como devem fazer todos os mortais, obrigando-me a olhar para mim mesmo, pois tínhamos a mesma idade.

Certa feita, numa das avenidas centrais da cidade, preso em um engarrafamento, não imaginava que voltaria a encontrá-lo em situação tão inesperada. À minha frente uma multidão que impedia o trânsito normal dos carros fazia gestos para o alto e gritava coisas que inicialmente não entendi.

Viaturas da polícia, policiais que procuravam fazer o escoamento do trânsito, bombeiros, e no alto de um edifício um homem perigosamente equilibrava-se numa saliência externa do prédio, tendo enorme vazio à sua frente. 
As pessoas que passavam juntavam-se à multidão e como um grande coral ensaiado, gritavam:
- Pula, pula, pula!

Alguns estudantes formavam um grupo à parte, desafiando:- Deixa de presepada, você não tem coragem, vai ver que é corno...

Lá em cima o homem, sua solidão e seus motivos que ninguém sabia.

De repente, um jato amarelo e brilhante começou a cair sobre a turba, inicialmente varrendo de uma extremidade a outra o grupo de curiosos que começou a dispersar procurando abrigo. Por vezes acertava este ou aquele espectador, como se um infalível artilheiro o dirigisse. Por outras perseguia uma assustada vítima até a calçada oposta.
O homem urinava. Urinava de uma forma absurda, como se todos os fluídos do seu corpo, naquele momento, se esvaíssem por sua uretra revoltada. E ele gargalhava, divertindo-se com a resposta que dava a multidão que há pouco o incitava à morte.
Quando acabou de urinar, calmamente entrou pela janela mais próxima e rapidamente foi seguro por fortes braços para desaparecer pelo vão adentro.
Alguns minutos e reapareceu carregado pelos quatro membros por policiais do resgate, que utilizando-o como um aríete, abria caminho em meio ao agrupamento que agora em vaias , retornava procurando ver de perto o suicida mijão.
Era o João, e sorria como uma criança traquina pega em flagrante.
Em nada lembrava um homem que queria morrer. Estava decididamente feliz.

Algum tempo depois o encontrei no Bar do Reagge no Pelô, ostentando enorme cabeleira rasta. Parecia mais moço e completamente descontraído dançava o som mágico de Marley com amigos da tribo. Conversamos um pouco e sem saber que estivera presente naquela tarde e a tudo assistira, contou-me que resolvera desligar o “automático de sua vida” e vive-la conforme a visão que certa tarde tivera.
Tornara-se artesão da madeira, cobre e prata e junto com outros semelhantes dividia um casarão no centro histórico da cidade, e acima de tudo que estava em paz.
Saí do bar certo que o João renascera. Como Sidarta Gautama debaixo da arvore Bodhí, renasceu Buda, João no alto do edifício, entre tormentos, vaias e mijo, tivera seu momento de iluminação e renascera rasta leve e livre.
Aquele sorriso que tinha visto em seu rosto e que incorporara no seu semblante, não deixava dúvida.

                                                                         Sávio Drummond.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Sem Destino

Há muitos anos, durante umas férias, saí com um colega com mochila nas costas, pedindo carona. O objetivo era irmos onde o destino nos levasse e o dinheiro desse.
Almoçávamos em restaurantes de “beira de estrada”, onde conhecíamos muitos caminhoneiros, e após mostrarmos os documentos, conseguíamos carona com facilidade.
Naquele tempo a violência não era tão grande, e o fato de sermos universitários, deve ter ajudado muito.
Quis a sorte que fossemos levado para o sul. Graças a Deus, pois era verão e o calor estava “de matar”. 
Os restaurantes de “beira de estradas” são excelentes. Tirando os “morotós “que crescem no molho de tomate, e as pernas de baratas, ocasionalmente encontradas no P.F.( Prato Feito), o resto é maravilhoso.  São tão gostosos quanto o tamanho de sua fome. Nesses restaurantes é muito comum o ovo cozido colorido. Anilinas de cores variadas são colocadas na água em que se ferve o ovo, e o “danado” quando cozido fica com a cor do pigmento. Ovos vermelhos, amarelos, azuis, uma delicia!  Só não aconselho o ovo verde, nem o roxo, pois parece que estão em decomposição, e nem o pastel de carne, apelidado de “Jesus ta Chamando”. Este, seguramente está, e o pirirí é garantido! Quantas vezes dormimos, no saco de dormir, olhando as estrelas.
Aos 14 anos, meu pai me deu um Telescópio, e por não ter janelas de vizinhas que morassem por perto, onde ele pudesse “pousar”, acabei apontando-o para as estrelas. E assim acabei conhecendo um pouco sobre astronomia.
O sono “me pegava” vendo o Cinturão de Órion (As três Marias), a nebulosa de Órion, restos de uma estrela que explodiu (Super-Nova), as Plêiades (Cacho) na constelação de Touro, Siriús, a estrela mais brilhante do firmamento, Alfa Centauro a estrela mais perto de nós, depois do Sol.
Ocasionalmente uma “estrela cadente” riscava o céu.
A crendice popular diz que se deve fazer um pedido toda vez que você ver uma, e que não se deve apontar para as estrelas, pois nasce verruga na ponta do dedo ”indiscreto”!
Certa feita, qual o filósofo alemão Franz Kafka, que escreveu A Metamorfose, em que um indivíduo num sonho se vê transformado em asquerosa barata, tive um sonho. De carona, chegava a uma cidadezinha, que pelo sotaque dos seus habitantes era no Rio Grande do Sul. Chamava-se São José e seus habitantes eram imensamente felizes e sorridentes. Na cidade vizinha, São João, ao contrário, todos eram muito tristes e “carrancudos”.Em São José as flores cresciam em qualquer lugar, e tudo era florido e verdejante.Em São João chovia todo dia e até raios caiam. No verão, o calor e a seca meteriam inveja a qualquer cidade nordestina do alto sertão.Ou era enchente ou a seca não deixava que nascesse uma flor sequer, ou matava as que nasceram no temporal passado.
Essa diferença devia-se ao ânimo de seus habitantes.Em São José todos eram otimistas e a alegria “estava no ar”.
Em são João todos eram pessimistas. Só viam os defeitos e a “feiúra” das coisas e das pessoas. Resultado; Os habitantes de São José viviam quase o dobro dos habitantes de São João.
Conversei com um psiquiatra amigo meu, contei sobre o sonho, e ele resolveu fazer um teste, sobre a influência do ânimo das pessoas.
Dr. Ribeirinho, aproveitando as férias de um colega que atendia em consultório defronte ao seu, pegou três plantas e colocou no seu consultório, e nele passou a atender pacientes em Mania.
Mania é a fase da antiga psicose Maníaco Depressiva, hoje chamado Distúrbio Bipolar, em que o doente apresenta-se otimista, fala rápido, quase não dorme e come. Nessa fase é comum o paciente perder peso. Na fase de Depressão, o doente dorme muito, quase não sai da cama, chora fácil, busca compensação na comida e aumenta de peso.
No seu consultório, onde atendia os doentes em mania pegou três mudas de planta, todas plantadas na mesma época, passou a irrigá-las com a mesma quantidade de água e colocar ao Sol durante o mesmo tempo.
No consultório do colega, passou a atender apenas aos pacientes em Depressão.
Nele colocou também três plantas que recebiam água e luz, igual às plantas do “consultório da Mania”
Assegurava-se assim, Dr. Ribeirinho, que a única variável a influenciar no viço das plantas era o ânimo dos doentes.Fim das férias do colega e as diferenças eram “gritantes”. As plantas colocadas no “consultório da Mania” estavam enormes. Coloridas, irradiavam agradável perfume.
As plantas do “consultório da Depressão” murcharam, algumas secaram e morreram. Por isso, seja otimista. A sua atitude mental, pode influenciar profundamente a sua vida. Seja otimista e viva mais!                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         
                                                                                                   Salvador, 21 de Fevereiro de 2012.
 Sávio Drummond.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

OXALÁ

O santo de maior devoção dos baianos é Senhor do Bonfim, Oxalá no Sincretismo. 
Fui médico em um posto de saúde na Baixa do Bonfim, e de lá se via a colina sagrada e a Igreja no alto. Às sextas-feiras, pelo menos 80% dos pacientes vestiam-se de branco. Sexta-feira é o dia de branco,  a cor de Oxalá.
Oxalá é o maior dos Orixás (Ori = Cabeça + Xá = Santo ). Dizem que na Bahia, existem dezesseis Oxalás, sendo que os mais conhecidos são Oxalufã, o Oxalá velho e Oxoguiã, o oxalá moço. Seus adeptos vestem-se de branco e usam colares com contas de vidro branco. Oxalá é o único Orixá branco (sarará), das divindades africanas.
O Capitão de Mar e Guerra o português Theodózio Rodrigues de Farias, durante uma tempestade, prometeu que se sobrevivesse, traria de Portugal uma imagem do santo de sua devoção. 
Em 18 de Abril de 1745, uma réplica de Nosso Senhor do Bonfim existente em  Setúbal,, terra do capitão, foi trazida para o Brasil e colocada na Igreja de Nossa Senhora da Penha. Em 1754 a imagem foi transferida para a Igreja construída no alto da colina.
A lavagem da Igreja começou a ser feita em 1773, quando a Irmandade dos Devotos Leigos, obrigou os escravos a lavarem seu interior, com a permissão do pároco, no 2 º Domingo de Janeiro. Algumas baianas de candomblé começaram a “dar Santo” dentro da Igreja, tendo sido então proibida a lavagem do seu interior. As baianas passaram então a lavar as escadarias e o adro do templo, que passou a ficar trancado neste dia, com água e perfume, chamada de Água de Cheiro.
A Medida do Bonfim trata-se de uma fita, com duas marcações, geralmente estrelas, que corresponde ao tamanho da imagem, daí chamar-se Medida.
Ao contrário do que se pensa Senhor do Bonfim, não é o padroeiro dos baianos. O padroeiro é São Francisco Xavier, por ter livrado os baianos de uma epidemia de Febre Amarela em Janeiro de 1686. 
A procissão começa na Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, construída no local da 1ª Igreja do Brasil, feita por Caramuru, entre 1509 a 1528, para a Índia Paraguaçu, sua mulher, convertida ao catolicismo. Era feita de sopapo e telhado de piaçaba, chamada de a Sé de Palha.
Ao longo do percurso de 8 km, barracas vendem cerveja, cachaça, churrasco, tira-gosto de toda espécie. Jegues enfeitados puxando carroças e mais recentemente com cartazes criticando o governo ou satirizando os políticos em geral, e muito samba de roda, completam o lado profano da festa, sempre aproveitado como “vitrine “ pelos políticos, acompanhados de assessores e “puxa-sacos”. Trabalhei também, em uma Clínica em que um dos donos era de Candomblé.A Clínica ia muito mal, com dívidas enormes, e não saía do “vermelho”.
Um Pai de Santo, chamado Zé do Mocotó, foi levado para fazer um “descarrego”. 
Em pleno plantão tive a atenção despertada por exclamações; - ”Rei dos astros valei-nos! Rei dos Astros proteja esta casa! Rei dos Astros abre os caminhos! Era Zé do Mocotó, sarará como Oxalá, sacerdote do Orixá com uma ajudante, ambos vestidos à caráter, de branco, com batas de pano da costa e turbantes brancos. Enquanto  Zé do Mocotó soltava baforadas de um enorme charuto, a baiana arrancava penas de uma galinha, percorrendo as enfermarias, com os doentes de olhos arregalados!
Senhor do Bonfim ou Oxalá é Santo milagroso.
Na Igreja do Bonfim, existe uma sala, repleta de cabeças, braços, pernas, pés, mãos, feitas em cera, que correspondem a partes do corpo que tinham doenças e foram curadas, após promessas ao santo, além de muletas, fotos de doentes em quadros, com nome e a descrição do milagre ocorrido e agradecimentos das graças alcançadas. Tem até um enorme alfinete, que coloquei na boca e ao apertar os dentes, tomou a forma de Bumerang e  acabei engolindo, quando assistia a uma partida do Bahia.

Essê - ê - babá, Oxalá! 


       Salvador, 14 de Janeiro de 2012.
  Sávio Drummond.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

O INÍQUO

Oitenta anos tinha Moisés quando subiu ao Sinai pela segunda vez para o reencontro com Deus. 
Após sua primeira ida ao Sinai, quando por lá demorou 40 dias, o povo reunido a sua espera, julgando-o morto, derreteu as jóias e fizeram um boi de ouro, e passando a adorá-lo, assim como faziam ao Deus Ápis, no Egito.
Deus após a “Farra do Boi de Ouro” resolveu acrescentar mais cinco aos dez, tradicionalmente conhecidos.
Alquebrado pelos anos, e pelo jejum, (assim como na primeira ida, por lá permaneceu sem comer) na descida do íngreme caminho, escorrega, e uma das três pedras espatifa-se. Sim eram três as tábuas da lei, com cinco mandamentos em cada, e não duas como conta a História oficial, pois cinco mandamentos foram acrescentados aos originais, diante da mais espetacular esbórnia que aqueles idos tempos conheceram.
Árduo foi o regresso do ancião, equilibrando-se com uma pedra em cada mão, e a terceira em dezenas de pedaços cuidadosamente recolhidos na túnica enrolada à guisa de mochila.
Colocada ordem na casa, procura Moisés por Leví, individuo conhecido  por todos por sua habilidade em esculpir as pedras e que atendia também pelo apelido de “O Iníquo” graças aos seus pendores pelo vinho e mulheres. Enfim, artesão do cinzel e dos vícios, que fazia por justa e merecida alcunha.
Foram encontrá-lo dias após, bem para o norte, lá pelas bandas do Oasis de Palmira, na tenda e nos braços morenos de bela Madianita, de grandes olhos cor de azeitona e grosso aro de ouro fincado no nariz.
Com ela havia se refugiado assim que a matança dos vinte e três mil começara a mando de Moisés, para castigar os que haviam participado da “Farra do Boi de Ouro”.
Sob protesto e jugo de três robustos mensageiros, Leví é levado ao patriarca que o esperava a frente de sua tenda de peles negras de cabra, com sua costumeira cara de poucos amigos e pesada sacola de pele de carneiro."Sujeito de mal com a vida, pensa entre os vapores do álcool o Iníquo. É o que dá falar tanto com Deus. Acaba por copiar-se-lhe os trejeitos..."
Frente ao líder tenta aprumar-se, mas seu estado é deplorável. De cara amarrotada, olhos remelentos, cabelos desgrenhados, lábios borrados de carmim onde ainda ardiam os beijos pagãos, a túnica imunda, exibindo manchas de diversas cores e procedências, e exalando uma mistura de repugnantes odores, onde sobressaíam o álcool das fermentadas e legítimas uvas de Sharon, o Aloé com seu cheiro de sepulcro e um esmagador “bodum” de suor que aos outros engolia...
Leví oscila em torno de um eixo imaginário, enquanto o vento fresco do deserto, àquela altura do ano, lembra-lhe o roçar delicado das mãos madianitas a que se entregara nos últimos dias. Na verdade, aguardara a chegada dos vingadores com uma certeza que nem todo o vinho do mundo afogaria, pois desde que a matança dos infiéis da apostasia do bezerro de ouro começara, sabia que sua hora chegaria, já que inclemente era o braço do Deus de Moisés.
E não adiantaria argumentar que entrara na farra por ceder aos apelos de sua natureza, e que não poderia crer ou amar um Deus incapaz de relevar suas fraquezas, de aceitá-lo como um simples homem amante da alegria, das músicas, do vinho e acima de tudo das mulheres. Ah... as mulheres. Nelas sim esse Deus tão raivoso mostrara sua natureza Divina. Talvez num dia inspirado pelo vinho de Sharon que o fizera esquecer-se das suas obrigações de Deus, e que não entendia porque o obrigava a ser tão sanguinário quanto Astarte, Moloc ou qualquer um dos muitos que conheceu no Egito. Melhor acabar tudo ali mesmo...
- Leví. E a voz de Moisés soou estranhamente amiga, fazendo-o abrir os olhos para certificar-se que era o patriarca e não os “espíritos do vinho” que lhes falavam aos ouvidos de dentro para fora.
- Leví, mandei buscar-te por que preciso de sua habilidade no trato com as pedras. Dou-te importante missão em troca de sua vida miserável. 
Nesta sacola estão os cinco mandamentos que o Senhor acrescentou em minha segunda subida ao Sinai. Não me foi dado tempo de lê-los tal a pressa em retornar, diante dos fatos acontecidos na minha ausência anterior. Por azar ou castigo, caiu-se-me a pedra e com ela espatifou-se o conteúdo. Recomponha a sua forma original e restitua-me o que nela está escrito, para que eu possa fazer cumprir-se a vontade do Senhor, e darei por esquecidas todas as suas iniquidades, tornando-te agradável ante aos olhos de Deus.
Um compenetrado Leví retira-se da presença do patriarca carregando a sacola com os fragmentos da pedra sagrada, onde o Senhor de próprio punho escrevera, e por um bom par de dias não “deu as caras” pelo acampamento, enfurnado em seu “cafifo” a dedicar-se a mais importante das encomendas que recebera em toda sua iníqua vida.
Recomposta a pedra, profunda tristeza toma conta de Leví. Dessa vez o Senhor “radicalizara geral”. Que graça teria a vida a partir daquele momento? Qualquer deslize e a morte era certa. Mas sua vida era feita de deslizes...
Cumprida a tarefa, comparece Leví à tenda de Moisés. Impecável, em colorida túnica nova, barbeado e recendendo exageradamente a perfumes raros, como é comum aos desacostumados ao uso.
Moisés sorridente, de longas barbas e cabelos brancos, lembrava Papai Noel e não o austero e carrancudo Homem de Deus que sempre fora.
Recebe do iníquo a pedra trabalhada, e numa primeira e geral inspeção aprova-a em largo sorriso de dentes surpreendentemente fortes e bonitos para a idade, ostentados de orelha a orelha. À medida que “corre” os olhos pelos parágrafos, sua expressão começa a mudar inquietando Leví. Aos poucos, olhos na pedra, olhos no Leví, muda de bonachão a colérico, enquanto o atormentado artesão olha para os lados, disfarçando uma desatenção, quando na verdade estuda o caminho mais curto para uma possível fuga que adivinha iminente.
Olhos arregalados, suando por todos os poros, com lábios trêmulos, rosto rubro, prestes a explodir em cólera sanguinária, constata o Patriarca toda a perícia e safadeza do Iníquo.Lá estavam gravados em baixo relevo, com a caligrafia irretocável de Deus, os cinco parágrafos tão ansiosamente esperados, mas seguramente não os originais, tamanha a permissividade do texto. 
E ainda por cima tivera o “topete” de assinar J H V H, o nome impronunciável de Deus!
A multidão que aguardava o desenrolar deste encontro, quando finalmente Leví, o Iníquo, tornar-se-ia um discípulo do Senhor, viram-no irromper porta afora, em desabalada correria, que provocaria inveja ao mais rápido atleta grego, de túnica arregaçada acima dos joelhos, para assim correr melhor, seguido de perto, em vôo rasante, por brilhante basalto negro, que por pouco não lhe acerta a nuca, deitando-lhe os miolos ao sol, não fosse a ginga rápida com que o salafrário desviou-se da rota de colisão, e além dos limites do acampamento, tomar o rumo do norte, onde braços morenos e carinhosos certamente o aguardavam.
Não se sabe por que Moisés desistiu de castigar o Iníquo, contentando-se em considerá-lo excluído do Povo de Deus, nem se retornou ao Sinai. Sabe-se apenas dos 10 conhecidos mandamentos.
Poupou-nos assim Leví, o Iníquo, quer por inspiração de gênio com visão histórica, ou simples espertalhão agindo em causa própria, de aturarmos mais cinco proibições, que se não nos tornou mais fácil o caminho ao Paraíso, seguramente facilitou-nos a vida, preservando-nos algumas alegrias.

Salvador, Fevereiro de 2011
Sávio Drumond


quarta-feira, 17 de julho de 2013

UTI

Em 1854, durante a Guerra da Crimeia, na qual o Reino Unido, França e Turquia lutaram contra a Rússia, a Enfermeira Florence Nightingale, objetivando dar assistência aos feridos, criou a 1ª sala destinada à esta finalidade.
Com a 1ª (1914-1918), e a 2ª (1936-1945) Guerras Mundiais, as salas de suporte à vida, equiparam-se com a descoberta de novas medicações e novos equipamentos.
Incrível, mas a tecnologia médica evolui muito mais em períodos de conflitos.
A ultra-sonografia, só foi entregue à Comunidade Científica, 10 anos após sua descoberta, pois era “Segredo Militar”, utilizada na identificação e comunicação dos satélites espaciais, pois a URSS não “podia saber". Com Monitores Cardíacos, que vigiam a frequência e o ritmo cardíaco, disparando alarmes sonoros, conforme alterações da frequência e ritmo do coração, Oxímetros Digitais que informam “24 horas por dia”, a quantidade de O2, no sangue do paciente, sondas que medem a pressão dentro dos vasos e coração, aparelhos que fazem a medida de O2, CO2 e eletrólitos, permitindo suas correções, medida da Pressão Venosa Central (P.V.C.), indispensável para o tratamento da Síndrome do Choque, muitos doentes conseguiram “enganar” a morte e viver por mais tempo.
Muitos corações, devido ao uso de Marcas-Passos, continuam a bater em tórax de indivíduos mortos.  Substâncias que, se injetadas em tempo hábil em Coronárias no Infarto Agudo do Miocárdio, Carótidas nos Acidentes Vasculares Cerebrais (A.V.Cs. / Derrames), Artérias Pulmonares nos Tromboembolismos Pulmonares, Artérias Mesentéricas em Infartos Intestinais,desfazem coágulos, e muitos indivíduos seguramente sobrevivem, em situações limites, que antigamente os matariam. 
A assistência intensiva a pacientes nestas salas internados, deu origem a novas especializações como o Médico Intensivista, a Enfermeira Intensivista e o Fisioterapeuta  Geral e Respiratório, para evitar lesões de Traqueia e em doentes entubados e Escaras de Decúbito e Pneumonia de Decúbito naqueles acamados por muito tempo.Que ironia, e ainda se morre de Apendicite, Diarreia, Desidratação, Tuberculose, de parto e todas as doenças relacionadas à miséria.
Até a Bíblica Lepra, está voltando com “toda força”, na Amazônia.
Na U.T.I. do H.G.V. (Hospital Getúlio Vargas), o Pronto Socorro, quando estudante, vivi situações que gostaria de esquecer.
Um professor nosso, Anestesiologista, era chefe da U.T.I.
 Embora nunca tivesse sido interno desta Unidade, costumava visitá-la com frequência, não só para aprender alguma coisa, como acompanhando os doentes que atendia na Emergência, e a ela os encaminhava.
Certa feita, levei um doente em Coma, vítima de acidente automobilístico.
Após minucioso exame, o Mestre reconheceu que o doente precisava de U.T.I.  e assistência respiratória, pois o tínhamos entubado na sala de Emergência, e a ventilação pulmonar, mantida manualmente.
Após perguntar ao residente (estava atendendo juntamente conosco na sala de Emergência), quem não “tinha mais jeito”, e que estava ocupando um respirador,examinou o prontuário e minuciosamente o doente, e quando os reflexos mais profundos, como o Corneal  já não mais existiam, fazia aquilo que todos nós queríamos fazer, mas que não tínhamos coragem: Desligava o Respirador!
Depois, após breve silêncio, quando parecia que rezava, mandava subir mais dois, pois iria desligar mais dois outros aparelhos, pois dois moribundos, estavam ocupando respiradores que poderiam salvar outros infelizes que tinham chance de viver.
Graças a maus políticos e más políticas, o Mestre se investia de Deus, decidindo quem viveria e morreria.
Será que a situação mudou?                                                                                                                                   Salvador, 01 de Maio de 2012
                                                                                                                                             Sávio Drummond.

Nota: O conto escrito em 2012, refere a situações ocorridas na década de 1970.