quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O SUICIDA


Conheci o João no tempo do Colégio Secundário. Após o vestibular perdemos contato e tornou-se um daqueles personagens que por encontrarmos ocasionalmente, passam a ser testemunha viva da inexorabilidade do tempo.

Encontrá-lo era como olhar-me num espelho fantástico, dos que não distorcem a imagem segundo nossas vaidades ou desejos. João simplesmente envelhecia como devem fazer todos os mortais, obrigando-me a olhar para mim mesmo, pois tínhamos a mesma idade.

Certa feita, numa das avenidas centrais da cidade, preso em um engarrafamento, não imaginava que voltaria a encontrá-lo em situação tão inesperada. À minha frente uma multidão que impedia o trânsito normal dos carros fazia gestos para o alto e gritava coisas que inicialmente não entendi.

Viaturas da polícia, policiais que procuravam fazer o escoamento do trânsito, bombeiros, e no alto de um edifício um homem perigosamente equilibrava-se numa saliência externa do prédio, tendo enorme vazio à sua frente. 
As pessoas que passavam juntavam-se à multidão e como um grande coral ensaiado, gritavam:
- Pula, pula, pula!

Alguns estudantes formavam um grupo à parte, desafiando:- Deixa de presepada, você não tem coragem, vai ver que é corno...

Lá em cima o homem, sua solidão e seus motivos que ninguém sabia.

De repente, um jato amarelo e brilhante começou a cair sobre a turba, inicialmente varrendo de uma extremidade a outra o grupo de curiosos que começou a dispersar procurando abrigo. Por vezes acertava este ou aquele espectador, como se um infalível artilheiro o dirigisse. Por outras perseguia uma assustada vítima até a calçada oposta.
O homem urinava. Urinava de uma forma absurda, como se todos os fluídos do seu corpo, naquele momento, se esvaíssem por sua uretra revoltada. E ele gargalhava, divertindo-se com a resposta que dava a multidão que há pouco o incitava à morte.
Quando acabou de urinar, calmamente entrou pela janela mais próxima e rapidamente foi seguro por fortes braços para desaparecer pelo vão adentro.
Alguns minutos e reapareceu carregado pelos quatro membros por policiais do resgate, que utilizando-o como um aríete, abria caminho em meio ao agrupamento que agora em vaias , retornava procurando ver de perto o suicida mijão.
Era o João, e sorria como uma criança traquina pega em flagrante.
Em nada lembrava um homem que queria morrer. Estava decididamente feliz.

Algum tempo depois o encontrei no Bar do Reagge no Pelô, ostentando enorme cabeleira rasta. Parecia mais moço e completamente descontraído dançava o som mágico de Marley com amigos da tribo. Conversamos um pouco e sem saber que estivera presente naquela tarde e a tudo assistira, contou-me que resolvera desligar o “automático de sua vida” e vive-la conforme a visão que certa tarde tivera.
Tornara-se artesão da madeira, cobre e prata e junto com outros semelhantes dividia um casarão no centro histórico da cidade, e acima de tudo que estava em paz.
Saí do bar certo que o João renascera. Como Sidarta Gautama debaixo da arvore Bodhí, renasceu Buda, João no alto do edifício, entre tormentos, vaias e mijo, tivera seu momento de iluminação e renascera rasta leve e livre.
Aquele sorriso que tinha visto em seu rosto e que incorporara no seu semblante, não deixava dúvida.

                                                                         Sávio Drummond.

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