quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

O CASARÃO

Na  ladeira da Independência, existiam vários casarões, do Século XIX. Em um deles morou minha mãe antes de se casar.
Com 2 andares, sótão e socavão (porão), abrigou vários membros da família, em seus 14 quartos. Construído com material nobre tinha o chão de tabuado de duas cores, vitrais franceses, sala de refeições com pinturas nas paredes, onde Ceres oferecia  frutos e flores, sala de música onde Faunos com flautas e pequenas liras, aludiam ao tema. Instrumentos pesados como Piano, Violão-Celo, Harpa e outros, lá ficavam permanentemente.
Lustres de bronze com cristais e pequenas torneiras que regulavam o gás encanado para que ardessem em pequenas “bocas”, testemunhavam uma época anterior à chegada da luz elétrica.
Pequenas estátuas de mármore e bancos revestidos com minúsculas conchas espalhavam-se pelo jardim e revelavam um período, que como concluiu meu irmão advogado ao fazer a cadeia sucessória de um imóvel;  “Enquanto houve trabalho, houve dinheiro. Quando começaram a entrar os diplomados começou a dilapidação do patrimônio”. Certa noite, passei  por lá e o som de música e muita luz que vinham do andar térreo me atraíram.
Empurrando um portão de ferro batido entrei no terreiro que cercava a casa. Belo móvel de jacarandá entalhado, no hall, portava um sem número de chapéus e guarda chuvas. Do fim do corredor, da sala de música, vinha o som de diversos instrumentos. Na estreita passagem, 2  atarefadas mocinhas de touca, longos vestidos negros e aventais passaram “através” de mim(?!) apressadamente, com bandejas cheias de salgadinhos e refrescos.Espantado, entrei na sala iluminada pelo enorme lustre e diversos castiçais. Um jovem de bigodinho e uniforme militar cantava Gondoleiro do Amor, poema de Castro Alves musicado por  Manoel Fábregas, que fez muito sucesso na década de 1860.

“ Teus olhos são negros, negros como as noites sem luar,
São ardentes, são profundos, como o negrume do mar. 
Sobre o barco dos amores, da vida boiando à flor,
Doiram teus olhos a fronte, do gondoleiro do amor...

Uma jovem morena de olhos verdes o acompanha ao piano, sob o vigilante olhar de uma senhora de preto (viúva?) e   cabelos brancos enrolados em um “coque”. Devia ser sua mãe.
Um homem alto, magro, todo de preto recitou uma poesia de sua autoria chamada “O Último Cruzado”, e um outro recitou belo soneto intitulado “Voz de Mulher”, arrancando suspiros das moçoilas, sob o acompanhamento  do piano e de alguns músicos.
Os homens tinham bigodões, usavam suspensórios e camisa de gola alta, alguns com gravatas borboletas, e sapatos de verniz de duas cores. As mulheres apertavam-se em espartilhos e usavam longas saias, algumas com “anquinhas”.
A pianista começou a tocar Clair de Lune de Claude Debussy, e nenhum músico “arriscou-se” a acompanhá-la, arrancando aplausos ao final.
De repente uma moça com trajes ousados, de boina, vestido de peça única em leve tom verde, que acabava logo abaixo dos joelhos, cabelos curtos a La Garçom e com longos colares começou a dançar o Maxixe, no disco de porcelana que colocaram no gramofone, ritmo proibido pela polícia nos “entrudos” e bailes públicos. Seu acompanhante não ficava atrás na extravagância das roupas, última moda em Paris.
Era um sarau literomusical, do Século XIX, e não sei como, retornei no tempo e estava participando dele, e ninguém me via, pois eles estavam em outra dimensão!
Por volta das 22h00min todos se retiraram, pois já era muito tarde. Antes que as criadas apagassem a luz, também saí e vi inúmeros Coches e Charretes se afastando. O Sarau terminara.

No outro dia retornei ao local e tive que usar toda força para abrir o portão que enferrujado, rangeu nas dobradiças ao me permitir passar. Em vez da grama do jardim aparada, mato alto. Não haviam mais as estátuas de mármore. Teriam sido roubadas? 
Aproveitando a luz natural, entrei na casa. Grossa camada de poeira cobria tudo. Todos os móveis tinham sumido. O tabuado de madeira de duas cores rangia sob meus pés.
Na sala de música as paredes descascadas, mal deixavam ver as pinturas. E um grande lençol cobria algo próximo a janela de vidros coloridos. Era o piano!
  

 Salvador, 26 de Setembro de 2011.
Sávio  Drummond.

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