quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

CARDOSÃO

Conheci - o no curso pré-vestibular. Natural de Alagoinhas, falou-me de seu pai, vaqueiro analfabeto que, todavia tinha a inteligência dos grandes mestres. O velho Cardoso chegou à mesma conclusão que Sheakspear, sem nunca o ter lido. Impressionado com o que me contou , escrevi:
                                                                                                                                                                                                                                                                                     Sentado debaixo de um pé de pau,
Sem ao menos saber ler, concluiu:
- “Ou é ou deixa de ser”.

Certa feita, Cardosão ligou-me 01:00. Falando baixinho ao telefone, disse-me:
- Savinho estou te ligando do meu trabalho, pra desabafar.
- O que houve Cardoso?
- A empilhadeira. Comecei a dirigi-la e acabei derrubando varias prateleiras e passei por cima da p*rr* toda.
Que merda eu fui fazer!
- E por que você está falando baixinho?
- Pra ninguém ouvir.
- Mas você não esta sozinho no setor? 
- Estou. É a consciência culpada... 
No outro dia botaram Cardoso “na rua”!

Cardosão morava em antiga pensão no Largo da Palma. Quase toda de madeira, rangia sob nossos pés, o que lhe valeu o apelido de Balança, graças ao programa da rádio Nacional, Balança Mas Não Cai.
Cardoso falava de um professor seu, no curso pré-vestibular na Ladeira de São Bento. Enquanto “equilibrava” (distribuía o mesmo número de átomos, antes e após a reação) uma reação química, José Nelson, professor de Química e dono do curso, ao se virar para a turma, mostrou que tinha se esquecido de fechar a braguilha. Quando se vira de novo para o quadro e fica de costas para a classe, um baixinho, apelidado de Batatinha, exclama em voz alta:  - Está com a braguilha aberta.
José Nelson escrevendo no quadro negro retruca:
- Obrigado... Fosse um sapateiro e diria que meu cadarço está desamarrado.

Cardoso  tinha um colega, que morava na pensão do largo da Palma, apelidado por Bodinho, pois não era muito amigo de banhos. Bodinho vestia-se de paletó e gravata pretos, atravessava o Largo da Palma e ia participar da sentinela na Igreja de mesmo nome. Lá ficava atento, ouvindo as conversas, para saber o nome da viúva e do falecido. Quando aprendia, dirigia-se a chorosa consorte (algumas escondiam a satisfação por terem se livrado de um “traste”, atrás de saudosas lágrimas), e oferecia-lhe seus “sentidos” pêsames, e como um autentico “boca-livre” devorava o que podia, pois não sabia quando comeria tão bem, e completamente bêbado pelos licores servidos, retornava a pensão de manhãzinha.
Falou-me do costume no interior de servir-se salgadinhos, doces, cafezinho e até licores no velório. Mulheres contratadas para “chorarem o defunto”, debulham-se em lágrimas a noite inteira.  São as carpideiras, e vestem-se de preto e choram as lágrimas que a viúva não tem. Cantadores são contratados, e uma música cantada em um velório ficou famosa: “Uma incelência, entrou no paraíso. Adeus irmão, adeus. Até o dia do juízo”.
Outro cantador, zonzo com os licores, de olho na viúva, que paquerava há muito tempo, não aguentou, e na beira do caixão arriscou: 
-“ Minha cumade seu marido morreu. A sinhora agora intá sozinha... Se argum dia a sinhora se arresorver minha cumade... A primeira preferênça é minha”...  

Certa noite estudava com Cardoso no pensionato da Palma, quando apitos ritmados chamaram nossa atenção. Era um Guarda Noturno. Com um cassetete como arma, apitava comunicando que estava tudo bem: -Priii, Priii... Priii, Priii... Ao longe outro respondia: - Priii, Priii... Priii, Priii... Aos poucos, apitos teciam as noites da Cidade da Bahia.
Chegamos à balaustrada de ferro, para ver o Guarda-Noturno pisando as pedras de “cabeças de negro”, que brilhavam devido à chuva que caíra à pouco, iluminadas pelos parcos postes com lâmpadas de luz amarelada, como que saída de um quadro de Rembrandt (Holanda, 1475 - 1564).
Forçava as portas, para ver se estavam trancadas, e tomava um cafezinho, que algum notívago lhe oferecia. Caso outro apitasse Pri, Pri, Pri, saía correndo e orientando-se pelo som ia ajudar o colega que perseguia algum marginal.

Certa noite Cardoso estava estudando de madrugada, na sala defronte do seu quarto, quando uma moça de camisola passou para o quarto de um rapaz. Ao se virar “deu de cara” com Cardoso e votou correndo para seu quarto. De manhã, durante o café da manhã, queixou-se à dona da pensão, de que ao bater na porta do colega (era uma reunião de Evangélicos) para pedir um remédio pra dor de cabeça, um homem “com os olhos de boi”, viu e antes que ele falasse alguma coisa pra ela, achou melhor esclarecer tudo. 
Cardosão ao ser chamado de “homem com olhos de boi”, “rodou a baiana”. 
- Eu não tenho nada com sua vida, e não era por lhe ter visto, que ia contar a ninguém. Não me chame de “homem com olhos de boi” não, por que senão eu lhe chamo de “ a moça que passou pro quarto do rapaz de camisola de madrugada”... 

Todo sábado íamos com outros rapazes da pensão, jogar bola nas praias de Pituba ou Armação. Até hoje não sei quem era mais “perna de pau”. 
Certa noite, conversávamos  de madrugada, quando outro rapaz do interior começou a falar das suas aventuras sexuais. De como era comum os adolescentes sertanejos terem relações sexuais com animais. Talvez pela altura, as jeguinhas são as mais procuradas. Sem querer deixou escapar: 
- Até hoje tenho a cicatriz de duas costelas quebradas por um coice...
             Salvador, 07 de Novembro de 2011.
 Sávio Drummond.        

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