quarta-feira, 26 de outubro de 2011

AQUELES OLHOS VERDES...

     Foi a pessoa mais generosa que conheci.
De sólida formação católica ajudou inúmeras pessoas, sem esperar nada em troca.
Até hoje muitos indivíduos, que foram beneficiados por ela, me falam a seu respeito de forma agradecida e terna. 
Costumava colocar nos cachorrinhos que teve o nome Grijo (Cinzento), que era o cachorro de Dom Bosco, devota que era da Família Salesiana.
Neta de portugueses tinha um sobrenome originário dos Judeus Portugueses que emigraram para o país, no século VII, fugindo da Inquisição. Aqui adotaram sobrenome de arvores (Carvalho, Oliveira, Parreira) e ofícios (Ferreira, Poeta).


Tinha uma nobreza no falar, no andar e nos gestos que me fizeram apelidá-la de Lady .
Professora primária de formação adorava ler.
Chocou-se com os palavrões de No País do Carnaval, de Jorge Amado. Na primeira visita que fez a seu primo, o Professor de Direito, Escritor e Poeta Lafaiete Spínola, mostrou-lhe o livro. Informada por ele de que era o personagem, homem do povo, que estava falando e não o autor entendeu perfeitamente e acabou lendo todos os livros do escritor grapiúna.


Costumava ter premonições. Quando de sua primeira gravidez, bordou em azul (cor utilizada pelos meninos) o nome do primogênito, em uma camisa chamada de Pagão, pois a criança a usava até o batismo.
Alguns anos após, novamente em azul o nome do 2º filho, e posteriormente em rosa o nome de uma menina, abortada espontaneamente.
Bordava maravilhosamente e fazia em Crochê um enxoval azul e outro rosa para entregar nas maternidades públicas, à primeira criança que nascesse no dia do aniversário do filho mais velho. No dia do nascimento do 2º filho dava em dinheiro o equivalente.


Tocava piano maravilhosamente. Conheci muitos pianistas, exceção seja feita aos profissionais, nunca ninguém tocou como ela.
Invariavelmente às seis da tarde, sentava-se ao piano e justamente com um busto de Jesus de olhos suplicantes e coração transpassado por uma coroa de espinhos e uma pequena lâmpada vermelha sempre acesa, fixado acima do piano, compunham um quadro de Rembrandt. 
O Redentor e a lâmpadazinha pareciam o Santíssimo. 


O piano me lembrava um altar, e debruçada sobre ele, a sacerdotisa deixava aflorar sua alma, em comunhão com o invisível. 
Começava sempre com A Ave Maria de Schubert e enveredava pelos clássicos e populares com uma sensibilidade de um poeta. O som ganhava forma, e as notas pesadas e fortes saltavam do instrumento para caírem como sólidos. Outras leves e ligeiras riscavam o espaço ricocheteando nas paredes ou planando coloridas como bolhas de sabão. Lá fora a cidade se espremia na hora do “rush”. Em sua sala a vida parava nesses momentos. Seu pequeno acompanhante canino uivava languidamente, parecendo protestar, quando interrompia a música. 


Quando criança, desenvolvi “Terror Noturno” e passava para sua cama todas as noites, e pacientemente acolhia meus medos. Muito vi e pouco pude falar para agradecer-lhe o afeto incondicional que tinha por mim e meu irmão.
De Lady Mariá, minha mãe,  ficaram apenas um retrato, aonde dois belos e grandes olhos verdes me fitam, e uma saudade enorme. 
Salvador, Junho de 2011
Sávio Drummond

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