quarta-feira, 23 de maio de 2012

A DESCANTADA


Fim de tarde de sábado. Dirije-se à barraca de praia perto de sua casa a fim de “curtir” a hora mais agradável do dia. Nela, a luz é ainda suficiente para destacar cores e contrastes sem arder na pele. Lá chegando, procura uma mesa, enquanto o vulto atarefado e grisalho do proprietário acena-lhe num cumprimento cordial. 
É uma tarde magnífica e começa a imaginar como seriam estas praias na época do descobrimento.
Com o pensamento viajando, chega a ver algumas caravelas de panos esfumados que se aproximam, quando dois vultos saídos do mar tiram-no desses devaneios. 
São duas belas jovens que vem em sua direção. A morena então é perfeita, com suas curvas mal cobertas por sumário biquíni, chama a atenção dos poucos presentes. Com ares indiferentes, próprios das mulheres acostumadas com os olhares mais ardentes, sentam-se na mesa em frente à sua. A morena de costas para ele e de frente ao mar. Sua acompanhante em posição inversa.
 A pele morena tem uma tonalidade acobreada pelo sol de muitas praias. A cabeleira cacheada chega-lhe à cintura com o peso d’água e esta, escorrendo em milhares de gotinhas, brilham ao sol poente, definindo-lhe os contornos como mágico neon. Fina penugem dourada arrepia-se ao frio do fim da tarde.
Lembra-se do ditado; “Se Deus fez algo melhor que a mulher, guardou pra Ele”. Discorda. Naquele momento têm a certeza que o Criador, num profundo gesto de amor à sua imagem e semelhança, deu-a para nós, míseros homens...
Viajando mais uma vez, não percebe que está com uma cara ridícula, com o olhar devorando o vulto moreno á sua frente, boquiaberto, sedento. 
A mímica de sua acompanhante chama-lhe a atenção. Mostra certamente à jovem que conquistara mais um admirador. Dissimuladamente, como se procurasse  qualquer coisa, em qualquer lugar, olha para os lados e finalmente, por cima do ombro, para ele.
E se não bastasse tudo aquilo a danada ainda tem os olhos claros! Subitamente formam-se em seu pensamento uns versinhos, daqueles que já vem prontos, sem direito a corrigir vírgula ou ponto. E no tampo da mesa deixa-os: 
Menina dos olhos d’água,
Olha um pouquinho pra mim.
Mata esta sede morena,
Que dói como coisa ruim. 
Das muitas mortes malvada,
De uma sempre temi.
Morrer de morte jurada,
Por teus olhos, fugindo de mim.

Escreve estes versos da forma mais acintosa possível, com letras grandes e de imprensa, na esperança de que procurem lê-los após afastar-se.  

Com esta estratégia, vai ao encontro do barraqueiro, onde encontra alguns amigos recém chegados e também impressionados com a beleza da jovem.Conta-lhes o que tinha feito, e aos poucos, um clima de expectativa toma conta do ambiente. As moças mudariam de mesa para lerem os versos? A cerveja rola solta e algumas apostas começam a serem feitas, quando, pretextando um incômodo que o Sol possa estar causando, levantam-se e procuram o abrigo da sombra do coqueiral que a esta altura derrama-se sobre a mesa que ocupou recentemente.   Mal chegando não conseguem conter a curiosidade, e, “as favas” com a discrição, inclinam-se sobre a mesa procurando  ler o que lá se encontrava. Entre taquicardia e sudorese nota que as duas conversam, certamente comentando os versos, quando de repente a morena vira-se para ele, e seu sorriso acerta-o devastador como um míssil.-Vai lá rapaz! O mais difícil você conseguiu! Cutucam-lhe às costas os amigos, que depositam nele, representante de última hora da “macheza local”, os desejos transbordantes de todos. Enche o peito e a passos decididos vai em direção a jovem. No meio do caminho quebra sua trajetória em 90° e toma o rumo de casa.Uma sonora vaia e alguns adjetivos nada lisonjeiros espocam da barraca.Cabeça baixa, mãos nos bolsos, pensa na negação de Machado de Assis ao ditado popular; “A ocasião faz o roubo. O ladrão já existia.” Logo ao chegar procura escrever os versinhos antes que os esqueça, e nem bem os termina, uma voz inquire às suas costas:  - Pra quem são estes versos? É sua filha adolescente, também morena, que pergunta curiosa. -São pra você. Tome-os! Lê-os atentamente e um tanto decepcionada, discorda.- Mas eu não tenho os olhos claros!- Licença poética filha, não tem a menor importância. 

Sávio Drummond
Maio, 2012

Um comentário:

  1. Velho Sávio, boas lembranças dos fins de tarde naquela barraca, do proprietário amigo, metódico e grisalho, do som do entardecer (era sempre Marisa Monte ou Lúcio Alves e Dick Farney; o Paroano abria as manhãs). Lembranças das belas morenas ... Naquele dia eu vaiei também!
    Abraço, Luiz Flávio

    ResponderExcluir