quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O CARECA ATRÁS DO VIDRO

Para minha filha e seus sonhos. Pois fora dos sonhos não há salvação.

Assustada pulou em nossa cama, camuflando-se entre as cobertas. 
Já tinha assistido a esta cena várias vezes, e o motivo era sempre o mesmo: medo de dormir sozinha.
Só que dessa vez, em lugar de acolher seu medo, experimentei conversar com ela, esforçando-me em voltar à infância e deixando fluir livremente tudo que me assustava quando de sua idade. Assim, travamos este insólito diálogo, que jamais esqueci:- Com medo dele de novo, não é? Basta botar o pé pra fora que o bicho debaixo da cama tenta pegar. 
- Como é que você sabe?
- Ora também já fui criança!
- É! Ele fica esperando, mas não consegue. Eu sou mais rápida e sempre puxo o pé antes dele pegar. Sem falar naqueles fantasmas fininhos e transparentes que moram atrás do armário e que saem flutuando, que a luz se apaga, pra vir sussurrar no seu ouvido; - “Você está com meeeeeedo”... 
- E a bruxa que desce do telhado pra roer nossas unhas?
- Isso mesmo. Temos que dormir com as mãos fechadas e os braços encolhidos.
- Também conheci essa. E o homem atrás do vidro da janela, sempre olhando a gente?
- É quando a gente vira, ele se abaixa a tempo e a gente nunca consegue vê-lo.
- Mas ele sempre está lá espiando...
- Sempre. Eu nunca o vi, mas tenho certeza que é careca!
- Quê coincidência! Eu sempre achei que ele fosse careca, mas nunca contei isso a ninguém.
Mas você já parou pra pensar, que eles não lhe fazem mal? Na verdade são até companheiros nesses momentos de escuridão e solidão?
Chegará um dia que daremos uma festa e convidaremos todos eles. A bruxa roedora de unhas, os fantasmas fininhos, o bicho da cama e o careca da janela.
Conversaremos sobre suas famílias, seus problemas e quando isso acontecer eles ficarão seus amigos e lamentavelmente, filha, nunca mais voltarão. Quando esse dia chegar é sinal de que você está crescendo, e a magia maravilhosa que existe em sua cabecinha, que lhe permite conversar com os bichos, alcançar as nuvens mais altas nas asas dos pássaros, fazer de um caixote velho um palácio encantado cheio de fadas, madrinhas de suas bonecas, estará desaparecendo e dando lugar aos sonhos de gente grande.
Mas, gente grande é tão chata filha, filha. Não tem imaginação. Só conseguem sonhar com coisas possíveis. Alguns já não conseguem sonhar, só desejar. 
Por isso filhinha, entenda que esses personagens vêem do mesmo lugar que as fadas e os príncipes, e que não lhes querem mal. Certamente assustar é da natureza deles. Como fazer encantamento é da natureza das fadas e governar povos felizes em reinos floridos é ofício dos príncipes encantados.
Então diga boa noite a eles e vamos todos dormir. Porque apesar dos meus fantasmas, eu já cresci e estou com um sono danado.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                        Salvador, 30 de Janeiro de 1990.
Sávio Drummond.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

ZENAIDE


No 1º Científico tive uma colega chamada Zenaide. 
Era a mais bonita e melhor aluna de Matemática da classe.
Assim como quase todos nós, tinha 15 anos, mas “pensava” como um adulto responsável. “De cabeça” Zenaide parecia ser avó.
Filha de uma viúva, ajudava a mãe como costureira na manutenção da casa.
De pele muito clara, olhos e longos cabelos castanhos, sempre parecia que tinha acabado de “sair do banho”. 
Muito equilibrada, frequentemente recorríamos a ela para que resolvesse “pendengas” entre nós, ajudava a todos e logo se tornou líder da turma, tal as suas sábias decisões. Liderança conquistada com afeto, e posta à prova por diversas vezes.
Uma foto em preto e branco me mostra parte da turma: D. Irene (bedel), Professor Barretão, que ensinava História Geral e sempre chorava quando falava da 2º Guerra Mundial, pois seu filho, aviador da F. E. B. (Força Expedicionária Brasileira) morreu em combate na Itália, Professor Vilobaldo de Física, com sua impecável gravata borboleta e cigarrilha nos dedos, Professora Maria Amélia, de Química, Professor Egídio, de matemática e alguns colegas como Givaldo, Leitão e Roberto, que juntamente comigo participaram da Feira de Ciências, construindo um foguete, Carminha, filha de abastados emigrantes espanhóis, que namorava o baterista do conjunto Raul Seixas e Seus Panteras, outros que não me lembro o nome e ela. Como em um time de futebol, ela estava em pé e no centro, como se fosse o Capitão. Só faltava a Taça de Campeão do Mundo, erguida por Bellini, Capitão da Seleção Brasileira, Campeã Mundial de Futebol, oito anos antes,  na Suécia em 1958.
No ano seguinte Zenaide apareceu “embuxada”. Com fardas cada fez mais folgadas, tentou esconder a barriga, até não poder mais. Ao parabenizá-la, entre lágrimas, me respondeu que depois da aula procurou o professor de Matemática, sua matéria preferida, para tirar dúvidas sobre logaritmos. Encontrou-o chorando, pois tinha brigado com a esposa e estava separado. Disse-me que ele resolveu suas dúvidas logarítmicas, e ela, muito solícita, resolveu consolá-lo em seus problemas matrimonias... Resultado: Professor Egídio, tirou-lhe as dúvidas, lhe deu um filho e voltou para a mulher!
Anos depois a encontrei no ambulatório de Cardiologia, pois fora levar a mãe, agora Hipertensa, e apresentou-me seu filho, que só conhecia “por fora”.O filho de Zenaide, então com 15 anos, se parece muito com a mãe. Alto, aloirado, um belo rapaz.
O “mau passo” de Zenaide, com o tempo, revelou ter sido um “ótimo e bom passo”.

                                                                                         Salvador, 29 de Maio de 2012. 
Sávio Drummond.