quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

A PASSEATA

Havia alguma coisa no ar além de Alegria-Alegria, ponteio ou And I Love Her.
Eram todos rebeldes com causas, envolvidos por uma aura que os identificava com os santos missionários ao abraçarem ideais de luta e sacrifício. À ditadura militar, presos políticos, rumores de guerrilha, juntavam-se clamores irresistíveis como um elemento da natureza, que os transformavam em pioneiros de um mundo novo, cheio de liberdade no relacionar-se, no jeito de ser e vestir, para desespero dos pais.
Eram dez horas da manhã e os secundaristas em peso reuniam-se às portas do Colégio da Bahia.
A invasão da Residência Universitária dias antes, e do próprio colégio na noite anterior, tinham sido “a gota d’água”. Os líderes estudantis discursavam em cima de palanques improvisados e estudantes vindos de todos os cantos da cidade reuniam-se ali, como se todos os caminhos pra lá se dirigissem.
Em pouco tempo a avenida estava coalhada de uniformes azul e branco e faixas de protesto.
Compacta, a multidão deslocava-se em direção à Piedade, e ele, que não era hippie nem revolucionário, estava lá. Mais um entre milhares, único perto dela. Que lhe importava a guerra do Vietnã, as botas dos generais, os colegas desaparecidos, se naquele momento ela estava tão
próxima?  Se o cheiro dos seus cabelos e do suor do seu corpo agitado era o único perfume que sentia, e se sua voz, já rouca e esganiçada era a única que conseguia ouvir e parecia-lhe o último som que ouviria por toda a vida? Seguiria-a até o inferno se preciso fosse! 
De repente a empolgação foi substituída pelo medo. Nas extremidades da avenida, os uniformes azuis e brancos confundiam-se com o cáqui e o verde-oliva da Polícia e do Exército.
Os estudantes apanhados na armadilha tentavam furar o cerco numa agitação desenfreada, como de uma cobra em estertores por ter a cabeça esmagada. Alguns fugiam pelas ruas laterais, para caírem direto nos camburões da Polícia e do Exército que estrategicamente fechavam todas as saídas.
Foi aí que ela abraçou-se a ele e reclinou a cabeça no seu ombro.
Sentiu-a trêmula e suas lágrimas molharam seu peito, onde um coração valente e indomável despertou. Por ela derrubaria todos os soldados, esmagaria todos os blindados e hastearia no mais alto dos prédios, sua bandeira. Nela não haveria dizeres patrióticos ou palavras de ordem. Ler-se-ia apenas TE AMO, como poderia alucinadamente amar um coração de dezessete anos. E aí, talvez, um fotógrafo amador registrasse seu gesto, como o da bandeira americana em Iwo Jima.
Gritos pavorosos, e o estalar de ferraduras nos paralelepípedos, trouxeram-no bruscamente à realidade, e ela pareceu-lhe sólida como um muro. Aos galopes, alguns policiais aproximavam-se rapidamente como se, em meio aquele alvoroço, tivessem sido os escolhidos.Talvez por estarem parados e abraçados, enquanto “o mundo vinha abaixo” ao redor. 
Quando iam ser atingidos, lembrou-se (Deus ajuda as crianças, os bêbados e os apaixonados), da alfaiataria de um amigo da família que ficava naquele trecho e que pelos fundos dava acesso às ruas de trás. Num ímpeto arrastou-a colada ao corpo e invadiram a loja, derrubando os manequins da entrada. 
Logo chegaram à rua dos fundos, onde o movimento era menor, mas ainda havia policiais montados. Um velho ditado diz que “Cavalo não desce escada”, e por certo, não desceriam as ladeiras de “cabeças de negro” da Bahia. 
Dito e feito. Ao chegarem ao meio da ladeira, olharam para trás e viram os cavaleiros assustados, que não conseguiam manter o controle de suas montarias, no alto do declive.
Continuaram calados e colados até a casa dela. Lá, choraram como crianças e amaram-se como adultos.
Seguramente havia alguma coisa no ar, além do som de Caetano, Edu Lobo e Beatles, naqueles tempos. 

Salvador,  26 de Junho de 1995
Sávio Drummond

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O BAIXINHO

Tive um colega na Faculdade, que por ser de baixa estatura, chamava-o de “Baixinho”, quando sempre me respondia; “Baixinho é seu salário”. 
Sempre bem humorado,  inúmeras vezes surpreendeu-me com suas “tiradas”:
- Baixinho, estou preocupado pois estou perdendo os cabelos.
-Também estava com esse problema, mas o resolvi.
- Diga-me o que você fez. Enquanto ainda tenho cabelos!
- Depois que arrumei uma caixinha, comecei a guardá-los. Caiu, guardei! Nunca mais perdi nenhum.
Espírita, mora com o médium Divaldo Franco, e é “Um Tio”, no interessante sistema de creche-escola, que Divaldo criou.
Os meninos são criados e educados por um“ Tio”, as meninas por uma“ Tia”.
O convívio, “do dia a dia” é feito em comum, e as refeições na chamada Casa Grande são anunciadas por um sino.
Daí o bem-humorado “Baixinho” dizer que fora das refeições, poder ser encontrado na Senzala, e me deu seu telefone, que nunca atendeu, mas deu!
A atual creche-escola, já foi orfanato, tendo Divaldo criado centenas de crianças.
Aos poucos descobriu que as crianças que adotava tinham pais vivos. Eram “órfãos sociais”. 
O orfanato da Mansão do Caminho deixou de ser orfanato, e passou a ser creche, escola, padaria e tipografia.
Nelas os habitantes do fim de linha de Pau da Lima e adjacências, aprendem uma profissão. Tenho certeza que a escolarização, as boas companhias dos frequentadores da Mansão, e o aprendizado de um ofício, afastaram inúmeros jovens das drogas e da marginalidade.
Certa feita, quando dávamos plantão em um Posto de Saúde no subúrbio, ajudei-o na retirada de um osso de galinha que um rapaz engolira. 
A “bendita” estrutura óssea do esqueleto do galináceo (falar difícil às vezes, nos faz sentir importante), percorreu todo o intestino e próximo ao anus “resolveu” atravessar e prender-se nas paredes do reto. O "Baixinho" tentava com uma pinça reta, “pescar “o corpo estranho.
- Aí Doutor, aí mesmo, logo na entrada! 
- Pensei que fosse saída, enquanto mostrava o osso ao rapaz, que o guardou como a um troféu.
Um dia levei-o ao bairro de Monte Serrat, próximo a Ribeira, na Cidade Baixa, para ver o tio de minha esposa que estava com câncer. De repente começou a bocejar o que não seria nenhuma novidade, se eu também não começasse a sentir um sono incontrolável. 
Com muita dificuldade chegamos até A Mansão, onde um médium, através de um passe nos repôs as energias.
Tratava-se do fenômeno chamado de Vampirismo. Nele, espíritos protetores do enfermo retiram energia das pessoas susceptíveis e doa aos doentes, em uma verdadeira transfusão, mecanismo que ocorre no passe Espírita.
Nele espíritos protetores do Médium doam a ele, energia, senão só conseguiria dar passe uma vez.
Descobri esse fenômeno quando atendia alguns doentes, que após a consulta sentiam-se bem melhor, e eu chegava em casa “ me arrastando”, tomava uma vitamina e dormia profundamente.
Durante o sono essas energias eram repostas, pelos meus guardiões, e acordava bem.
Passei a identificá-los e atendê-los por último, sob a justificativa de que eram casos especiais e que necessitavam de uma atenção particular.
Certa feita trouxe vários rapazes, da Mansão, pra almoçarem aqui em casa. Minha esposa esmerou-se e fez uma “senhora” feijoada.
Enquanto comíamos, um deles reclamou com seu companheiro do lado:
- Tá magra! Tá magra!
Queria dizer que tinha pouco toucinho... 

Excelente orador,  substituia (ele e outros, como o nosso também colega, Peixinho) Divaldo nas palestras. Certa feita, em uma palestra, narrou para um auditório repleto, um sonho que minha esposa teve e lhe contou: “Uma amiga sonhou que estava em um grande corredor. Ao longe um quadro na parede. Era um retrato de Jesus, com olhos piedosos.
Ela aproveitou para pedir a Jesus que a fizesse ganhar na loteria. Que ganhasse sozinha, pois estava cheia de dívidas.
A terna expressão foi substituída por uma “carranca” de ódio:
- Aqui pra você! E deu-lhe uma “senhora banana”. Como você tem coragem de me pedir dinheiro!
Seguranças botem esta mulher pra fora! E dois enormes Pit-Bulls começaram a correr atrás dela.
Por não saber por onde entrou, não sabia por onde sair. Acordou pedindo Socorro”.
A mulher foi pedir dinheiro logo a Jesus!

Conheci pessoas que enquanto você está falando, não conseguem manter os olhos abertos, e “caem no sono”. O “Baixinho”, inaugurou uma nova modalidade; Começa a dormir enquanto fala. Incrível, foi a 1º vez que vi isso!Costumava deixar muitos desenhos na cabeceira de sua cama, quando saía do plantão, pois estava sempre dormindo, pois dormir pra ele nunca foi problema.
Devia entrar para “Os Dorminhocos Anônimos”.

Salvador, 01 de Dezembro de 2011.                                                                                                                                                                 Sávio Drummond.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

OS POETAS

muitos anos, quando fiz a apresentação de um escritor sergipano, escrevi em seu livro de poesias:

Fazer poesia dói.
Dor pequenina que vem dos “ocos” da gente,
Que cresce, encorpa e pesa, até esmagar.
Poetas são aqueles que dançam com suas dores.
Quixotescas figuras que pastoreiam sonhos.
Voe poeta como as nuvens, acima das misérias do mundo,
E “chova seus versos”, sobre a aridez dos homens!

Poetas são pessoas que conseguem enxergar beleza onde ninguém vê. E acima de tudo, são aqueles que fazem poesia de suas dores. Daí dizer-se que para um poeta, ou um sambista, uma paixão desfeita origina um verso, ou um sambinha. Mas um amor que se vai, dá origem a uma poesia, ou um samba quê tocará, em todas as rádios.
Outra característica dos poetas é seu extraordinário poder de síntese.  Se você for descrever sua cidade, preencherá metade (espero) de uma folha de papel. No entanto, Carlos Drummond de Andrade fala a respeito de sua pequena Itabira (M.G.), desbastada pelas mineradoras, que plainaram seus montes:
“Itabira é apenas uma foto na parede, mas como dói! “ 

Os “Doutos” os classificam em épicos, líricos, clássicos, parnasianos...  
Os poetas “não estão nem ai”, para as classificações, que só servem mesmo para atormentar os estudantes, principalmente os vestibulandos.
Poesia é a expressão de um sentimento, é um canto de dor ou alegria do coração.

Por uma questão de educação, listei poesias de alguns conhecidos poetas, por idade. Primeiro os mais velhos:  
Luis de Camões (1525 - 1580)
Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer.
É um andar solitário entre a gente.
É nunca contentar-se de contente.
É um cuidar que se ganha em se perder. 
É querer estar preso por vontade, 
É servir a quem vence o vencedor.  
É ter com quem nos mata a lealdade. 
Nos corações humanos amizade. 
Se tão contrário a si é o mesmo amor.

                                                                                                                                                                                                                              Castro Alves (1847-1871) em uma estrofe de Vozes d’África.

Deus! O Deus! Onde estás que não respondes?
Em que mundo, em que estrela Tu T’escondes
Há dois mil anos, te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...

O português Fernando Pessoa (1888 -1935), baseado em uma frase dita pelo General Romano Pompeu (106 - 48 AC), aos marinheiros que temiam ir para a batalha; “Navegar é preciso, viver não é preciso”, escreveu:
Quero para mim o espírito desta frase.
Transformada a forma casar como eu sou.
Viver não é necessário, o que é necessário é criar.
Não conto em gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande.
Ainda que para isso,
 tenha que ser o meu corpo e minha alma a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade,
Ainda que para isso tenha de perdê-la como minha.
Cada vez mais, assim penso.
Cada vez mais ponho da essência do meu sangue,
O propósito impessoal de engrandecer a pátria,
E contribuir para a evolução da humanidade.
É a forma que em mim tomou o misticismo de nossa raça.

De Fernando Pessoa também é:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente,
Que chega a fingir que é dor,
A dor que deveras sente.

Do mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902 - 1987), separei:
                                                                                                                                                                                                                                                                                      Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido apelo do não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas
muito mais que lindas
essas ficarão.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           

Do chileno Pablo Neruda (1904 - 1973), escolhemos:


Não te quero, senão por que te quero,
e de querer-te a não te querer chego,
e de esperar-te quando não te espero,
passa meu coração do frio ao fogo.

Quero-te só porque a ti te quero.
Odeio-te sem fim e odiando- te rogo,
e a medida do meu amor viajante,
 é não te ver e amar-te como um cego.
Talvez consuma a luz de Janeiro,
seu raio cruel meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.
Nesta história só eu me morro,
e morrerei de amor, por que te quero,
 por que te quero amor, a sangue e fogo.
                                                              
De Vinicius de Morais (1913 -1980):

São demais os perigos desta vida.
Pra quem tem paixão principalmente.
Quando uma Lua chega de repente,
E se deixa no céu como esquecida...
E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer,
Aí então é preciso ter cuidado,
 Por que deve andar perto uma mulher.
                                                                         
Ainda do Poetinha, o adorável Soneto de Fidelidade:


De tudo ao meu amor serei atento.
Antes, com tanto zelo, sempre e tanto,
Que mesmo em face do maior encanto,
 Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento,
E em teu louvor hei de espalhar meu canto.
E rir meu riso e derramar meu pranto,
Ao teu pesar ou teu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure,
 Quem sabe a morte, angústia de quem vive.
Ou a solidão, fim de quem ama.
Eu possa me dizer do amor que tive;
Que não seja eterno posto que é chama,
Mas que seja infinito enquanto dure.

De um poeta desconhecido (um tal de Sávio Drummond), anotei Semiologia* do Amor. * Semiologia - Sinais e sintomas que caracterizam o quadro clínico das doenças.

Tenho tonturas.
Talvez sejam da idade.
A cabeça nas alturas, sem a identidade
Do caminho em que vago.
Vira-lata da vida, que não me fez afago.
Tenho tremores.
De uma febre esquisita,
Que queima, mas não esturrica.
Prolongando o sofrimento,
 De penitente em juramento.
Tenho suores.
Gelados, quentes, alternados.
Da alma nascentes, enviados.
Que me encharcam a pele crestada,
E se misturam as lágrimas derramadas.
Tenho medos.
Vejo sombras atrás da porta.
 De amores proibidos, numa vida quase morta.
 Ferida a caco de vidro, que sangra desatada,
Mais teima em respirar, qual chama açoitada.
Tenho dores.
No peito, na alma que me ofendem.
Semiologia de amor?
Mas também pode ser dengue.

Os poetas populares deixaram nos Cordéis todo seu lirismo. Patativa do Assaré e Catulo da Paixão Cearense são seus maiores representantes. De Catulo da Paixão Cearense:

  A razão por que nasce roxa a flor do Maracujá. 

Maracujá já foi branco,
 Eu posso inté lhe ajurá.
Mais branco que caridade,
Mais branco que o luá.
Quando a frô brotava nele.
Lá pros cunfim do sertão.
 Maracujá parecia,
Um ninho de argodão.
Mas um dia, há muito tempo.
Num mêis que inté num me alembro.
 Se foi Maio, se foi Junho,
Se foi Janeiro ou Dezembro.
Nosso sinhô Jesus Cristo
Foi condenado a morrer.
Na cruis, crucificado.
Longe daqui como quê.
Pregaro Cristo a martelo,
E ao vê tamanha crueza,
A natureza inteirinha,
Pois-se a chorá de tristeza.
Chorava os campu,
As foia, as ribera.
Sabiá também chorava,
Nos gaio da laranjera. 
E havia junto da cruís.
Um pé de maracujá,
Carregadinho de frô,
Aos pés de nosso Sinhô.
E o sangue de Jesus Cristo,
Sangue pisado de dô.
Nos pé do maracujá,
Tingia todas as frô.
Eis aqui seu môço,
 A estória que eu vi contá.
A razão por que nasce roxa,
A frô do maracujá.
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                             .      
Salvador, 03 de Novembro de 2011. 
Sávio Drummond