Oitenta anos tinha Moisés quando
subiu ao Sinai pela segunda vez para o reencontro com Deus.
Após
sua primeira ida ao Sinai, quando por lá demorou 40 dias, o povo reunido a sua
espera, julgando-o morto, derreteu as jóias e fizeram um boi de ouro,
e passando a adorá-lo, assim como faziam ao Deus Ápis, no Egito.
Deus
após a “Farra do Boi de Ouro” resolveu acrescentar mais cinco aos dez,
tradicionalmente conhecidos.
Alquebrado
pelos anos, e pelo jejum, (assim como na primeira ida, por lá permaneceu sem comer)
na descida do íngreme caminho, escorrega, e uma das três pedras espatifa-se. Sim
eram três as tábuas da lei, com cinco mandamentos em cada, e não duas como
conta a História oficial, pois cinco mandamentos foram acrescentados aos originais,
diante da mais espetacular esbórnia que aqueles idos tempos conheceram.
Árduo foi o regresso do ancião, equilibrando-se com uma pedra em cada
mão, e a terceira em dezenas de pedaços cuidadosamente recolhidos na túnica
enrolada à guisa de mochila.
Colocada ordem na casa, procura Moisés por Leví, individuo
conhecido por todos por sua habilidade em
esculpir as pedras e que atendia também pelo apelido de “O Iníquo” graças aos
seus pendores pelo vinho e mulheres. Enfim, artesão do cinzel e dos vícios, que
fazia por justa e merecida alcunha.
Foram
encontrá-lo dias após, bem para o norte, lá pelas bandas do Oasis de Palmira,
na tenda e nos braços morenos de bela Madianita, de grandes olhos cor de
azeitona e grosso aro de ouro fincado no nariz.
Com
ela havia se refugiado assim que a matança dos vinte e três mil começara a
mando de Moisés, para castigar os que haviam participado da “Farra do Boi de
Ouro”.
Sob protesto e jugo de três robustos mensageiros, Leví é levado ao
patriarca que o esperava a frente de sua tenda de peles negras de cabra, com
sua costumeira cara de poucos amigos e pesada sacola de pele de carneiro."Sujeito de mal com a
vida, pensa entre os vapores do álcool o Iníquo. É o que dá falar tanto com
Deus. Acaba por copiar-se-lhe os trejeitos..."
Frente ao líder tenta aprumar-se, mas seu
estado é deplorável. De cara amarrotada, olhos remelentos, cabelos
desgrenhados, lábios borrados de carmim onde ainda ardiam os beijos pagãos, a
túnica imunda, exibindo manchas de diversas cores e procedências, e exalando
uma mistura de repugnantes odores, onde sobressaíam o álcool das fermentadas e
legítimas uvas de Sharon, o Aloé com seu cheiro de sepulcro e um esmagador “bodum”
de suor que aos outros engolia...
Leví
oscila em torno de um eixo imaginário, enquanto o vento fresco do deserto, àquela altura do ano, lembra-lhe o roçar delicado das mãos madianitas a que se
entregara nos últimos dias. Na verdade, aguardara a chegada dos vingadores com uma certeza que nem
todo o vinho do mundo afogaria, pois desde que a matança dos infiéis da
apostasia do bezerro de ouro começara, sabia que sua hora chegaria, já que
inclemente era o braço do Deus de Moisés.
E não adiantaria
argumentar que entrara na farra por ceder aos apelos de sua natureza, e que não
poderia crer ou amar um Deus incapaz de relevar suas fraquezas, de aceitá-lo
como um simples homem amante da alegria, das músicas, do vinho e acima de tudo
das mulheres. Ah... as mulheres. Nelas sim esse Deus tão raivoso mostrara sua natureza
Divina. Talvez num dia inspirado pelo vinho de Sharon que o fizera esquecer-se
das suas obrigações de Deus, e que não entendia porque o obrigava a ser tão
sanguinário quanto Astarte, Moloc ou qualquer um dos muitos que conheceu no
Egito. Melhor acabar tudo ali mesmo...
- Leví. E a voz de Moisés soou estranhamente amiga, fazendo-o abrir os
olhos para certificar-se que era o patriarca e não os “espíritos do vinho” que
lhes falavam aos ouvidos de dentro para fora.
-
Leví, mandei buscar-te por que preciso de sua habilidade no trato com as pedras.
Dou-te importante missão em troca de sua vida miserável.
Nesta
sacola estão os cinco mandamentos que o Senhor acrescentou em minha segunda
subida ao Sinai. Não me foi dado tempo de lê-los tal a pressa em retornar,
diante dos fatos acontecidos na minha ausência anterior. Por azar ou castigo,
caiu-se-me a pedra e com ela espatifou-se o conteúdo. Recomponha a sua forma
original e restitua-me o que nela está escrito, para que eu possa fazer
cumprir-se a vontade do Senhor, e darei por esquecidas todas as suas iniquidades,
tornando-te agradável ante aos olhos de Deus.
Um compenetrado Leví retira-se da presença do patriarca carregando a
sacola com os fragmentos da pedra sagrada, onde o Senhor de próprio punho
escrevera, e por um bom par de dias não “deu as caras” pelo acampamento, enfurnado
em seu “cafifo” a dedicar-se a mais importante das encomendas que recebera em
toda sua iníqua vida.
Recomposta a pedra, profunda tristeza toma conta de Leví. Dessa
vez o Senhor “radicalizara geral”. Que graça teria a vida a partir daquele
momento? Qualquer deslize e a morte era certa. Mas sua vida era feita de
deslizes...
Cumprida
a tarefa, comparece Leví à tenda de Moisés. Impecável,
em colorida túnica nova, barbeado e recendendo exageradamente a perfumes raros,
como é comum aos desacostumados ao uso.
Moisés
sorridente, de longas barbas e cabelos brancos, lembrava Papai Noel e não o
austero e carrancudo Homem de Deus que sempre fora.
Recebe
do iníquo a pedra trabalhada, e numa primeira e geral inspeção aprova-a em
largo sorriso de dentes
surpreendentemente fortes e bonitos para a idade, ostentados de orelha a
orelha. À
medida que “corre” os olhos pelos parágrafos, sua expressão começa a mudar
inquietando Leví. Aos
poucos, olhos na pedra, olhos no Leví, muda de bonachão a colérico, enquanto o
atormentado artesão olha para os lados, disfarçando uma desatenção, quando na
verdade estuda o caminho mais curto para uma possível fuga que adivinha
iminente.
Olhos arregalados, suando por todos os poros, com lábios trêmulos, rosto
rubro, prestes a explodir em cólera sanguinária, constata o Patriarca toda a
perícia e safadeza do Iníquo.Lá estavam
gravados em baixo relevo, com a caligrafia irretocável de Deus, os cinco
parágrafos tão ansiosamente esperados, mas seguramente não os originais,
tamanha a permissividade do texto.
E
ainda por cima tivera o “topete” de assinar J H V H, o nome impronunciável de
Deus!
A multidão que
aguardava o desenrolar deste encontro, quando finalmente Leví, o Iníquo,
tornar-se-ia um discípulo do Senhor, viram-no irromper porta afora, em
desabalada correria, que provocaria inveja ao mais rápido atleta grego, de
túnica arregaçada acima dos joelhos, para assim correr melhor, seguido de perto,
em vôo rasante, por brilhante basalto negro, que por pouco não lhe acerta a
nuca, deitando-lhe os miolos ao sol, não fosse a ginga rápida com que o
salafrário desviou-se da rota de colisão, e além dos limites do acampamento,
tomar o rumo do norte, onde braços morenos e carinhosos certamente o
aguardavam.
Não se
sabe por que Moisés desistiu de castigar o Iníquo, contentando-se em
considerá-lo excluído do Povo de Deus, nem se retornou ao Sinai. Sabe-se apenas
dos 10 conhecidos mandamentos.
Poupou-nos
assim Leví, o Iníquo, quer por inspiração de gênio com visão histórica, ou
simples espertalhão agindo em causa própria, de aturarmos mais cinco
proibições, que se não nos tornou mais fácil o caminho ao Paraíso, seguramente
facilitou-nos a vida, preservando-nos algumas alegrias.
Salvador, Fevereiro de 2011
Sávio Drumond